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Nš 1501 - Ano 31
22.09.2005



Katrina, Bush e Pirro*

Rogério Cezar de Cerqueira Leite**

s tradicionais "cientistas de plantão" já foram mobilizados. Em entrevistas a jornais e televisões americanas, informaram que não há provas científicas inquestionáveis de uma relação de causa e efeito entre o aquecimento global e as perturbações climáticas observadas nestes últimos tempos. Estariam querendo salvar a pele do presidente George W. Bush, que se recusa a assinar o Protocolo de Kyoto?

O caso lembra a história do professor de filosofia, cético, pirrônico mesmo, que foi informado de que sua mulher o traía e resolveu segui-la, acompanhado de um amigo. À porta de um motel, viu sua esposa entrar. "Ora, talvez tenha ido descansar", diz ao amigo. Pouco depois, chega ao motel o seu vizinho. Comenta o professor: "Coincidências acontecem". Duas horas mais se passam. Saem a esposa e o vizinho de mãos dadas, beijinhos e afagos. "Ora, nada prova que houve penetração."

Os defensores da política americana para energia e meio ambiente vão continuar encontrando argumentos contra qualquer relação entre a tragédia de Nova Orleans e o aquecimento global.

Até recentemente, pouco antes de Kyoto, ainda existiam cientistas que afirmavam que não havia provas de que o aquecimento global fosse causado por emissão de gases de efeito estufa. Obedeciam à primeira-ministra Margareth Thatcher, do Reino Unido, e a interesses das empresas de petróleo. Hoje, até o Tony Blair adotou a bandeira conservacionista. Talvez porque o petróleo inglês acabará em quatro anos.

Até o presente, os defensores da política americana têm usado dois argumentos. Dizem que não há conexão entre os furacões que nascem no Golfo do México e nas Bermudas e as temperaturas da superfície dos oceanos nessas regiões. Então como explicar que esses fenômenos ocorrem, historicamente, de agosto a novembro, quando as águas desses mares no Hemisfério Norte já tiveram tempo de esquentar com a chegada do verão? Além disso, neste catastrófico ano de 2005 o número de furacões, ciclones e tempestades, antes do início da sua temporada tradicional, iniciada em 1o de agosto, já havia alcançado a média histórica (11 ocorrências).

É uma coincidência, nos dirão os cientistas de aluguel, que tenha sido justamente no ano em que o verão veio tão mais cedo e intenso que tantos acidentes, inclusive nos EUA, tenham ocorrido. E seria também uma coincidência o fato de que as temperaturas das águas no Golfo do México estejam em toda sua extensão acima de 30º C, as máximas medidas nestes últimos 30 anos. Fenômenos climáticos são tão complexos e dependem de tantos parâmetros inter-relacionados que jamais se encontrará uma relação de causa e efeito clássica, pontual. Mas há certas coincidências que valem como prova.

O segundo argumento levantado pelo bushismo é o de que a aceleração do número e o aumento de intensidades das anomalias climáticas observadas nestes últimos dez anos sejam uma falha de percepção, pois ocorre após um longo período de calmaria em que não houve aumento de ocorrências climáticas dessa natureza. Esquecem-se esses especialistas de que justamente nesse período não houve aumento da temperatura da Terra por causa do aumento do albedo devido à presença crescente de aerossóis na atmosfera. Aliás, contrariamente à argumentação dos bushistas, essa correlação é mais uma evidência _ e poderosa _ de que a causa da intensificação e da aceleração de catástrofes climáticas é o aquecimento global.

Mas, como diria o nosso filósofo pirrônico, não há provas de que houve penetração. Com isso, apesar do furacão Katrina, Bush não assina o Protocolo de Kyoto. É claro que ninguém pode deixar de reconhecer que este ano houve um número sem precedentes de irregularidades climáticas de conseqüências trágicas.

Quase simultaneamente, houve ondas de calor nos EUA, na Europa, na Ásia e na África. Inundações na Ásia, nos EUA e na Europa. E também furacões devastadores nas Antilhas, nos EUA e na Ásia. E até no Brasil, um caso com poucos precedentes. E ainda por cima começam a se desenvolver hipóteses de que a atividade vulcânica, responsável por maremotos (tsunamis), pode ser induzida pelo aumento da temperatura do mar.

É, portanto, essencial que estudos estatísticos sobre anomalias climáticas que já se iniciam sejam acelerados, para que se possam remover as últimas resistências do asnismo bushista. Ou será necessário um furacão Katrina em Washington para convencer o Partido Republicano, os barões do petróleo e o presidente Bush de que alguma coisa está acontecendo naquele quarto de motel.É, aliás, emblemático o fato de que o primeiro grande cataclismo climático inequivocamente correlacionável com o aquecimento global e, conseqüentemente, com o efeito estufa e com o consumo de combustíveis fósseis, tenha ocorrido justamente no único país que deixou de assinar o Protocolo de Kyoto.

E que, além do mais, tenha também esse furacão, além da calamidade em vidas e sofrimento humano, destruído a principal fonte de sua própria ocorrência, ou seja, plataformas de extração e destilarias de petróleo. Coincidência ou vingança da natureza ultrajada?

O importante, entretanto, é que não se pense que o Katrina ou este verão de trágicas anomalias climáticas sejam um acontecimento fortuito, acidental.Tudo indica que outros katrinas virão, talvez ainda neste ano, talvez no ano que vem. Ou fazemos alguma coisa para reduzir emissões de gases de efeito estufa ou nos acostumamos com hecatombes.


* Artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 8 de setembro
** Físico e professor emérito da Unicamp

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