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Nº 1547 - Ano 32
11.09.2006

Os olhares políticos sobre as cotas

Antonio Julio de Menezes Neto*


s debates sobre as cotas estão na ordem do dia, com méritos para os movimentos negros que conseguiram levar esta discussão para as universidades e para a sociedade. Porém, este artigo buscará apontar o sentido político – com seus diversos olhares – da adoção, ou não, das cotas, conforme o grupo ou a posição política dos indivíduos sociais. Mesmo sabendo que existem outros olhares, quero apresentar quatro posicionamentos políticos concernentes a esta questão:

1) A primeira posição é a dos liberais políticos. Por esta concepção, todos são iguais perante a lei e a adoção de cotas seria uma forma de preconceito e privilégio jurídico para determinados grupos. Defendem a prevalência do mérito individual e argumentam que as cotas poderiam beneficiar pessoas não-aptas ou menos merecedoras de freqüentar a universidade. O problema principal desta concepção residiria no fato de desconsiderar as diferenças sociais e étnicas já existentes.

2) A segunda posição é a dos pós-modernos. Para eles, as lutas sociais estão fragmentadas em lutas isoladas da totalidade social (étnica, de gênero, de família, de geração, dentre outras). Defendem a impossibilidade das mudanças globais e dizem que as discussões devem ser focadas em grupos de interesses. Descentram as análises das classes sociais, da relação trabalho versus capital e do mérito liberal, para focar em interesses de grupos sociais. O grande problema é que, não enfrentando o poder global do capital e evitando a economia política, tenderíamos a refazer sociedades globalmente desiguais, mesmo gerando melhorias sociais para parcelas da população.

3) A terceira posição é a dos defensores da esquerda tradicional. Alegam que na proposta das cotas estaria embutido o deslocamento da discussão central das classes sociais para a problemática racial, e que este deslocamento esconderia o caráter crítico ao capitalismo, sendo, portanto, conservador. Para essa corrente, a grande contradição da sociedade está na exploração do trabalho e que esta não escolhe raça. O negro seria mais pobre e mais explorado devido à circunstância histórica do capitalismo brasileiro. Portanto, a centralidade no combate ao racismo nada mais é do que a luta contra o capitalismo. O problema desta posição é não considerar as especificidades já gestadas nos seios das sociedades, como o racismo e o machismo, considerando-os apenas um sub-produto das diferenças de classe.

4) Na quarta posição estão os defensores das “políticas afirmativas”. Sem desvinculá-las de uma análise global e crítica da sociedade de classes, essa corrente denuncia que a desigualdade social é intrínseca ao capitalismo. Assim, a crítica ao sistema deve ser sempre colocada. Chamam de falácia o princípio da igualdade de direitos quando se sabe que parcelas da população possuem trajetória de vida de carências materiais e, aliado a isto, seriam vítimas do racismo. Assim, esta quarta posição lutaria contra a desigualdade imposta por uma sociedade submissa ao capital (exploração) e as desigualdades culturais incorporadas socialmente, como o racismo (opressão). Porém, lutar por políticas universalistas e contra a sociedade capitalista seria fundamental, mas não bastaria para mudar a situação do negro, pois o racismo não se restringe a uma questão socioeconômica; é também cultural. Essa posição é criticada porque, ao abarcar questões diferentes, ela correria o risco de desfocar as questões centrais e, na prática, nada mudar.

É certo que a principal luta é pelo livre acesso às universidades, como já acontece em muitos países, mas esta é uma questão que não se resolve no curto prazo. Assim, acredito que, de imediato, devemos lutar por ações focadas tanto nos explorados quanto nos oprimidos, tanto em políticas globais quanto em políticas afirmativas, tanto numa sociedade igualitária quanto numa sociedade que respeite as diferenças.

Assim, fico com a quarta posição, pois considero fundamental, numa sociedade desigual como a brasileira, criar canais para que as classes populares e oprimidas pelo racismo possam freqüentar a universidade. Também defendo que se leve em conta o “mérito” na seleção, porém as notas não podem ser o único critério de avaliação para a entrada na universidade. Até para que possamos oferecer condições de igualdade de competição para os candidatos, temos que apresentar algum diferencial. E lembro que esta questão tem precedentes. Em muitas situações legais, o país trata os desiguais de forma desigual, até mesmo na busca de maior igualdade de oportunidades e de vida digna para todos. Existem, por exemplo, políticas de desenvolvimento regional voltadas para a correção de distorções entre as regiões do estado ou do país. Impostos são pagos de forma diferenciada conforme rendimento ou lucro. E por aí vai.

Mas esta não pode e nem deve ser uma questão focada, privilegiando apenas a ascensão de alguns grupos ou permitindo que negros alcancem a classe média. É preciso construir um projeto de sociedade mais justa, humana e solidária.

*Sociólogo, doutor em educação e professor da Faculdade de Educação da UFMG

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