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Nº 1641 - Ano 35
16.2.2009

opiniao

A inteligência humana e seus correlatos
sociais: os dados que não queremos ver

Carmen Flores-Mendoza*

Em outubro de 2008, o Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais do Departamento de Psicologia da Fafich organizou o seminário internacional Os resultados Pisa e as perspectivas do ensino superior em América Latina. Pisa, sigla inglesa para Programme for International Student Assessment, é um teste patrocinado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) e composto por provas de conhecimentos em Leitura, Matemática e Ciências. Nas três avaliações até agora realizadas (2000, 2003 e 2006), o Brasil e os demais países da América Latina ocuparam as últimas posições.

Os resultados do Pisa interessam à sociedade, pois, entre outras coisas, permitem identificar o nível do capital humano disponível em cada país. Sabemos que alguns países incrementam sua riqueza porque seus cidadãos possuem a qualificação necessária para gerar produtos economicamente valorizados no mercado internacional e para superar as barreiras naturais e econômicas que limitam seu bem-estar.

Entretanto, o Brasil produz riqueza. Cabe questionar como isso é possível se o desempenho nacional no nível básico é baixo. A situação do ensino superior pode nos dar uma pista. Duas universidades públicas brasileiras, USP e Unicamp, estão entre as 200 melhores do mundo segundo o Times Higher Education-QS World e o Institute of Higher Education Shanghai Jiao Tong University. Elas são altamente seletivas em seus vestibulares. Se olharmos os resultados do Pisa de 2006, veremos que 2% dos estudantes brasileiros obtiveram uma pontuação entre 568 e 657, alcançada por 15% dos espanhóis e por quase 50% dos finlandeses. Já 13% dos alunos brasileiros tiveram uma pontuação entre 479 e 568, obtida por 50% dos espanhóis. Portanto, poderíamos esperar que parte dessa parcela de jovens (15%) com habilidade equivalente à média européia seja absorvida por universidades do perfil da USP e da Unicamp.

Ao observar seu círculo social, o leitor já deve ter notado que as pessoas adotam maneiras diferentes de agir, pensar e tomar decisões. E certamente você se sente tentado a justificar essas diferenças recorrendo a fatores exclusivamente externos. Os dados que apresento abaixo desmitificam essa crença.

Em 2006, selecionamos três escolas públicas de Belo Horizonte de diferentes níveis de vulnerabilidade social e aplicamos um questionário de informações gerais (QIG) e um teste de capacidade cognitiva a 600 crianças de 9 e 10 anos. Depois que realizamos correlações parciais controlando o efeito da capacidade cognitiva ou de vulnerabilidade social da escola, constatamos que a primeira manteve com o QIG uma associação superior à estabelecida pela segunda. Repetimos o estudo com 215 alunos de idades entre 10 e 15 anos de diversas escolas municipais de uma cidade do interior, com a diferença de que, dessa vez, avaliamos a condição socioeconômica das famílias. O resultado foi o mesmo.

Procuramos saber o que ocorria com jovens de idades mais avançadas. Testamos alunos do ensino médio, aplicando uma medida de capacidade cognitiva e outra de personalidade. A cognitiva foi três vezes mais poderosa do que a de personalidade para predizer o rendimento escolar. Novamente, o poder de predição do nível socioeconômico das famílias foi bastante pequeno.

Se observamos o estilo da prova Pisa, percebemos que ela se aproxima claramente de um teste de inteligência, pois envolve o campo do raciocínio para além do mero conhecimento escolar. É provável que, incomodado com tais argumentos, o leitor se questione: “E os diversos tipos de inteligência? Tudo se resume à inteligência?” Novamente recorro a dados. Ao realizar uma análise fatorial – técnica que permite reduzir as variáveis quando há relações significativas entre elas – com notas de nove disciplinas escolares do ensino médio, encontramos um fator responsável por 85% da variabilidade. Isso significa que os alunos que se saem muito bem em uma disciplina também se saem bem em outras. Aqueles alunos com problemas sérios em uma disciplina apresentam também muita dificuldade em outras. Temos consciência de que a inteligência geral não é tudo na vida, mas sem dúvida ela é muito importante para se ir além da mera sobrevivência.

O Brasil matricula 24% dos seus jovens em universidades, taxa inferior, por exemplo, à da Argentina (39%) e à do Chile (27%). É necessário que o Brasil universalize o ensino superior? Depende. Se ensino superior significa produzir conhecimento de ponta, então uma reduzida parcela de pessoas poderá assumir tal tarefa. Tendo a concordar com a antropóloga Eunice Durham, da USP, que em novembro de 2008 declarou a uma revista semanal de circulação nacional: “Estou convencida de que já temos universidades públicas em número suficiente para atender aqueles alunos que podem, de fato, tornar-se Ph.Ds. ou profissionais altamente qualificados. Eles são, naturalmente, uma minoria. Isso nada tem a ver com o fato do Brasil ser uma nação em desenvolvimento. É exatamente assim em outros países”.

Quanto aos jovens talentosos, é legítimo perguntar que tipo de educação estão recebendo na universidade. Sabemos que eles têm boa capacidade cognitiva e conhecimento. Entretanto, não sabemos se estão desenvolvendo sabedoria para ocupar, no futuro, os altos postos em nossa sociedade. É ingenuidade imaginar que a capacidade de liderança esteja dissociada da capacidade cognitiva.

É por razões como essas que organizamos o seminário internacional, que discutiu questões que também preocupam estudiosos norte-americanos, como bem sintetizou um dos convidados, o professor Charles Murray, no livro Real education: Four simple truths for bringing America’s schools back to reality. Em relação à sua visita – motivo de manifestações publicadas em sucessivas edições deste BOLETIM –, devo afirmar que as crenças ou as qualidades pessoais de um pesquisador são absolutamente irrelevantes para provar ou discutir uma hipótese. A ciência não pode avançar sob o princípio do pensamento único e sim sob o princípio popperiano da falseabilidade. Se há um ambiente adequado para validar os dados e a interpretação que Murray dá a eles, este certamente é a academia.

* Professora do Departamento de Psicologia da Fafich e coordenadora do Laboratório de Avaliação das Diferenças Individuais

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