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Nº 1677 - Ano 36
23.11.2009

O cineasta que transformou a palavra em protagonista

Manoel de Oliveira, diretor português que tem quase a idade do cinema, será a 14ª personalidade agraciada com o Doutor Honoris Causa da UFMG

Manoel de Oliveira Filmes
Manoel de Oliveira em ação: legítimo representante do cinema autoral

Itamar Rigueira Jr.

“Os irmãos Lumière inventaram o cinema para que o homem pudesse sobreviver, e Manoel de Oliveira gerou uma obra para que o homem pudesse, através de todos os sentidos, redescobrir o cinema.” A paráfrase de um provérbio tuaregue é de Elisa Frugnoli, pesquisadora do Instituto Camões, em Portugal. Assim ela define e homenageia o cineasta português que “tem a idade do cinema”, para repetir o lugar-comum. O português Manoel de Oliveira, que nasceu em 1908, 13 anos depois da primeira sessão de cinema, receberá da UFMG, no próximo dia 26 de novembro, o título de Doutor Honoris Causa e fará conferência dentro do ciclo Sentimentos do Mundo.

Com mais de 50 filmes, um dos grandes representantes do cinema autoral, Manoel de Oliveira encontra-se em plena atividade. Lançou este ano Singularidades de uma rapariga loura, baseado no conto homônimo de Eça de Queiroz, e está realizando mais um filme – este sobre painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, as pinturas do Políptico de São Vicente, obra do século 15 abrigada no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa.

Dono de vitalidade impressionante para seus quase 101 anos, e considerado surpreendentemente heterodoxo do ponto de vista formal, Oliveira tem obra marcada por “uma profícua interlocução criativa entre os recursos expressivos próprios do cinema e aqueles outros da literatura, do teatro, da música e das artes plásticas”, nas palavras do professor César Guimarães, da Fafich, no texto em que propôs à Congregação da Unidade a indicação do nome do cineasta para receber o título da UFMG.

As conquistas do Leão de Ouro em Veneza (1985 e 2004) e da Palma de Ouro em Cannes (2008) ajudam a entender por que Itália e França estão entre os países onde Manoel de Oliveira desfruta de maior prestígio. “A crítica francesa do final dos anos 70 descobriu sua obra, e a partir de então, ela passou a ser considerada fundamental”, afirma Mateus Araújo, doutor em filosofia pela UFMG e Sorbonne e professor de cinema na França. Ele informa que o público francês tem muitas oportunidades de assistir aos filmes de Manoel de Oliveira, muitos deles realizados em coprodução com aquele país. Ainda segundo Araújo, o cineasta não chega a ser unanimidade em Portugal, e no Brasil a circulação de seus filmes tem se limitado aos festivais.

“Na Itália, que dá enorme importância à arte cinematográfica, Manoel de Oliveira é considerado um deus. Ganhou inúmeros prêmios e tem um público que definitivamente não é só de especialistas”, testemunha o professor Aniello Avella, da Universidade de Roma Tor Vergata, um dos articuladores da homenagem e da vinda de Oliveira à UFMG. Especialista em história da cultura portuguesa e brasileira, Avella colaborou com o cineasta no filme Palavra e utopia, sobre o padre Antônio Vieira, e organizou eventos e livros em torno de sua obra.

Avella afirma que Manoel de Oliveira tem grande consideração pela academia, embora não dependa dela e não tenha ligação com qualquer escola de pensamento. “Ele tem sido objeto de uma série de estudos em diversos países”, conta o professor, que se refere sempre ao cineasta como “mestre” e o define como “um humanista atrás da câmera”.

Cinema renovado

Mateus Araújo lembra que até os anos 60 Oliveira “era um grande cineasta que fazia filmes de vez em quando”. Começou ainda na época do cinema mudo com Douro, faina fluvial, de 1931, dirigiu no início dos anos 40 Aniki-bobó – que marcou sua passagem do documentário para a ficção e é considerado precursor do neorrealismo em Portugal –, e mais tarde ficaria muito tempo sem filmar, limitado pela ditadura de Salazar. Ato de primavera, de 1963, que retrata um auto da paixão no interior de Portugal, é para Mateus Araújo uma espécie de antecipação do Evangelho de Pasolini. “O filme é interessantíssimo como metacinema”, ele comenta.

Com agudo sentido da beleza, segundo Araújo, Oliveira transformou a palavra em protagonista no cinema, dando-lhe autonomia em relação à encenação. “Ele renovou o cinema moderno, com planos longos e contemplativos e uma direção original, que trilhou caminhos não explorados por grandes diretores como Godard, Rosselini e Buñuel”, afirma o ex-aluno da UFMG. Mateus Araújo ressalta a capacidade que Manoel de Oliveira tem de manter a qualidade estética de sua obra em um patamar muito alto, mesmo realizando tantos filmes há algumas décadas.

Além de explorar a relação do cinema com o teatro, Manoel de Oliveira fez parcerias com escritores como Dostoievski, Nietzsche e os portugueses Camilo Castelo Branco (Amor de perdição) e Agustina Bessa-Luís (O convento). O filme que o diretor lançou este ano, Singularidades de uma rapariga loura, é baseado em conto homônimo do também compatriota Eça de Queiroz.

Para poucos

Manoel de Oliveira receberá o título de Doutor Honoris Causa em solenidade no auditório da Reitoria da UFMG nesta quinta-feira, às 18h30. Antes, às 17h, ele participa de mesa-redonda com os professores Mateus Araújo, doutor pela UFMG e Sorbonne, Aniello Avella, da Universidade de Roma Tor Vergata, e César Guimarães, da Fafich, dentro do ciclo Sentimentos do Mundo. Sua conferência intitula-se Palavra, imagem e utopia.

Décima quarta personalidade agraciada pela UFMG com o título de Doutor Honoris Causa, Manoel de Oliveira honra uma tradição iniciada em 1928, com a homenagem ao jurista e escritor J.X. Carvalho Mendonça. A história do título inclui curiosidades como a que envolve Carlos Drummond de Andrade, homenageado em 1973. Ele demonstrou resistência em ser alvo de uma “honraria indevida” e não veio recebê-la, por problemas de saúde. Quando, em 1987, planejava-se enviar uma missão do Conselho Universitário ao Rio de Janeiro para a entrega, o poeta faleceu.

Além de Carvalho Mendonça, Drummond e Manoel de Oliveira, foram agraciados Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1930), Juscelino Kubitschek (1960), Rodrigo Melo Franco de Andrade (1961), John Van Nostrand Dorr II (1966), Carlos Chagas Filho (1979), Carlos de Paula Couto (1980), Desmond Tutu (1987), Francisco Curt Lange (1989), José Saramago (1999), Marshall David Sahlins (2007) e Chico Buarque de Holanda, que ainda não recebeu o título.

O Doutor Honoris Causa é concedido por iniciativa do Conselho Universitário ou por sugestão de uma das congregações da UFMG. Em seu capítulo 4, o Regimento da Universidade determina que ele se destina a brasileiros ou estrangeiros cujo trabalho possua especial relevância para a cultura, a educação ou a ciência. O próprio Conselho Universitário faz a entrega do título em sessão solene e aberta.

Clique aqui e leia também a entrevista com Manoel de Oliveira.