Busca no site da UFMG

Nº 1702 - Ano 36
5.7.2010

Amizade e poesia em tempos de guerra

Livro organizado por Eneida Maria de Souza reúne cartas trocadas por Henriqueta Lisboa e Mário de Andrade

Itamar Rigueira Jr.

Carta de Henriqueta a Mário de Andrade: autores trocaram correspondências durante seis anos

“Seu devotamento às causas da inteligência e da sensibilidade é um dos mais impressionantes e mais belos exemplos que me tem sido dado apreciar”, afirmou a poeta e escritora mineira Henriqueta Lisboa, em 1939, na segunda de diversas cartas enviadas ao modernista Mário de Andrade. Estava começando uma correspondência que só seria interrompida com a morte do escritor, em 1945.

Marcado pelo desencanto de Mário com a ditadura de Getúlio Vargas e a Segunda Guerra Mundial, o material chega às livrarias na forma do volume Correspondência – Mário de Andrade e Henriqueta Lisboa, organizado pela professora emérita da UFMG Eneida Maria de Souza. Segundo ela, Henriqueta foi uma das pessoas com quem Mário de Andrade mais se abriu em confidências e conselhos poéticos. “A correspondência entre os dois é um dos documentos importantes para se analisar os últimos anos de vida do escritor, que faz um balanço do Modernismo e de sua vida”, revela a professora aposentada da Faculdade de Letras.

Os escritores se encontraram poucas vezes em Belo Horizonte, no Rio e em São Paulo, esta última dias antes da morte de Mário. Quanto às cartas, Henriqueta vai se abrindo aos poucos por meio de poemas enviados ao escritor; Mário, por sua vez, devolve análises rigorosas dessa poesia. Além disso, escreve Wander Melo Miranda na apresentação do livro, apesar de personalidades e projetos literários tão distintos, “eles se abrem a confidências e reflexões marcadamente pessoais, num nível de franqueza e complexidade raras vezes alcançado até mesmo para quem, como Mário, se dedicou sem sossego ao que chamou de ‘epistolomania’”.

Integrante dos quadros do governo Vargas – trabalhava no Serviço do Patrimônio Nacional –, Mário de Andrade vivia a contradição de se alinhar aos críticos das perseguições políticas e da censura. As cartas a Henriqueta, destaca Eneida Souza, contêm uma espécie de exame de consciência dessa situação e da própria posição dos modernistas diante da sociedade. “O tom de melancolia e de ajuste de contas consigo próprio revela a sensibilidade e a responsabilidade intelectual do escritor” comenta.

Encontro de arquivos

O Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP guarda 63 documentos, entre cartas, telegramas, postais e bilhetes de Henriqueta para Mário. Por sua vez, o Acervo de Escritores Mineiros da UFMG tem arquivados 42 cartas, três bilhetes e dois telegramas do modernista para a escritora mineira. As cartas de Mário de Andrade já haviam sido publicadas, mas precisavam ser cotejadas com as de Henriqueta, até então inéditas. O livro que acaba de ser lançado é o terceiro volume da Coleção Correspondência de Mário de Andrade, iniciativa do IEB e da Editora da USP, que também publicaram cartas trocadas com Tarsila do Amaral e Manuel Bandeira.

De acordo com a professora emérita da UFMG, somente a partir da década de 1980, o estudo e a publicação de correspondências entre escritores ganharam relevância para efeito de conhecimento de suas obras. “A crítica literária era centralizada na própria obra, deixando de lado dados biográficos que pudessem revelar algo da personalidade do escritor. Manuscritos, entrevistas e cartas são fundamentais para a pesquisa”, afirma Eneida Maria de Souza.

Além dos textos das cartas e outros que se relacionam com a história dessa correspondência, o livro tem reproduções de fotos, quadros que retratam Mário de Andrade e cartões-postais. Entre tantas manifestações de Mário, na última carta, de 20 de janeiro de 1945, ele opina sobre mais um poema da amiga, dizendo que “é lindo, dos mais belos desta fase em que você está, uma perfeição”. E, referindo-se ao trecho “A morte pertencia à vida/Parte integrante do cotidiano” (mais especificamente a este segundo verso), ele recomenda: “Você tem de arranjar um jeito de dizer isso mais... mais qualquer coisa que não seja tão pensadamente prosaico”.