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Nº 1717 - Ano 37
01.11.2010

opiniao

HUMILDADE intelectual

* Marcos Fabrício Lopes da Silva

Crítica construtiva é redundante. Quando é destrutiva, não existe mais a crítica. A discussão de ideias sai de cena. Entram em campo a concentração ideológica e a fulanização do debate. Os debatedores se esquivam do diálogo radical e promovem a desconversa superficial. Isso pode piorar quando o lance descamba para um triste combate, transformando os envolvidos em adversários ou combatentes. Um festival de farpas e agressões gratuitas, além de injúrias, calúnias e difamações passam a invadir o espaço que deveria ser propício ao distanciamento analítico e ao envolvimento argumentativo de questões relevantes ao bem comum.

Oscar Wilde tem um aforismo desconcertante que sinaliza para a noção de que a inteligência, diferentemente da expectativa cristalizada do senso comum, é a arte de plantar pontos finais para colher reticências: “só os que perderam a cabeça sabem raciocionar”. Cabeça feita é oficina da cretinice.

Ousado, com determinação, sem ser determinista – assim caracterizo o livre-pensador. Para este sujeito criativo, não há simplesmente um objeto de estudo a ser explorado, e sim uma causa de vida a ser esmiuçada. Pesquisar é namorar o silêncio de ouro e não “ficar” com a fala de touro. Integrando esse ritual reflexivo, o método se configura como um professor de dança que pode contribuir com a disciplina necessária à liberdade dançarina de quem pesquisa. Pensador não descarta, recicla. Respeita o acaso sem temê-lo. Diferentemente de remoer, quem filosofa matuta, rumina. Digere com vagar o alimento, misteriosamente estranho, deliciosamente familiar.

Saber pensar não é dominar o assunto, mas compreender as entrelinhas do tema em discussão. É saber interferir inteligentemente no andamento dos fatos, abordando zelosamente as feridas biopsicossociais do nosso cotidiano, diagnosticando-as com esmero e espírito de superação, buscando também enaltecer os feitos coletivos que merecem ser ressaltados de maneira ampla e exemplar. Conforme adverte Ricardo Evangelista, no poema Profecias de um sertanejo, “quem poda a esperança semeia indignação”. A indignação está para a cultura da reclamação e o passageiro calor da hora, assim como o inconformismo está para a perene chama transformadora e a cultura da crítica embasada. Quem sabe pensar não age por mero fazer ou por força do hábito. O pensador procura sair do automatismo da ação pela ação. É preciso saber por que e como se faz o que se pretende realizar. Ou seja, o que interessa é a reflexão especulativa e a potência do agir, disciplinando os sentimentos de impotência e onipotência que fundamentam as extremidades da condição humana. Nesse sentido, convém trazer à baila a sábia dúvida, que tem o importante papel de desarticular o vício da convicção. Para além da escolaridade, saber pensar exige principalmente educação. Muito mais do que possuir berço esplêndido, é preciso adquirir sabedoria de manjedoura, conhecida também como humildade intelectual.

Com humildade intelectual, o conhecimento se transforma em sabedoria. Com esforços acadêmicos e não acadêmicos, saber pensar significa reconhecer de maneira sagaz as relevâncias contextuais do fato a ser contemplado e experimentado de forma ativa.

O educador Pedro Demo, no livro Saber pensar, aponta ainda outras características caras à virtude reflexiva como enfrentamento da força do hábito: a) ver longe para além das aparências; b) perceber a greta das coisas; c) inferir texto inteiro de simples palavra; d) olhar por trás, fazer o caminho inverso, desfazer a trama, ler o problema; e) surpreender a luz escondida na sombra; f) deduzir da falta a presença de alguém. Quem sabe pensar não busca apenas a convergência entre os pontos de vista. Mais interessante do que isso é identificar e avaliar as divergências, os nós conflitantes existentes nas vozes autorais expressas e silenciadas.

Anda em baixa no processo educacional a humildade intelectual devido à deformação continuada de indivíduos especialistas em endeusar ou demonizar algo ou alguém e analfabetos em humanizar os fatos e os envolvidos em tais episódios. Na preocupação de se encontrarem os culpados, encobre-se a responsabilidade solidária a respeito de tudo que se passa entre nós. Enquanto o parasitismo social vigente alimenta o sistema competitivo, marcado pelo padrão “perde-ganha”, eliminam-se oportunidades valiosas para a prática do mutualismo comunitário, que encontra respaldo no princípio cooperativo, simbolizado pela relação “ganha-ganha”, sendo esta a tônica do verdadeiro espírito esportivo.

Sabido é o humilde que sabe que o sabichão não sabe nada. Como, então, identificar os soberbos de plantão? Na voz marcante de Aline Calixto, a composição Saber ganhar, de Eduardo Krieger, oferece o mapa da mina: “Você sabe perder/ Tem fé pra recomeçar/ O difícil pra você/ É saber ganhar/ É saber ganhar/ Se você perde/ Na humildade se apresenta/ E de novo você tenta/ Sem vaidade e sem rancor/ Mas quando ganha/ Chega a me causar espanto/ Pois seu ego infla tanto/ Pensa que é superior/ Põe sua cabeça no lugar/ É fácil saber perder/ Difícil é saber ganhar”.

Para os prepotentes, a escola da vida é uma agência fomentadora de egos e os diplomas são tapetes vermelhos por onde desfilam vaidosos “com um anel no dedo e um DR no nome”, conforme bem observam Accioly Neto e Santana, na canção Xote universitário. Para os humildes, a escola da vida forma sujeitos descolados, eternos aprendizes de como se dá nó em pingo d’água, sem chover no molhado, como faz o mandachuva. Nesse tipo de estudo, recebe certificado quem sabe construir alianças para que todos desfrutem do tapete mágico rumo ao mundo encantado da instrução compartilhada.

* Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorando e mestre em Estudos Literários/Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.

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