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Nº 1767 - Ano 38
19.3.2012

opiniao

O desafio de acolher os calouros

*Alexandre Zambelli Loyola Braga

A Universidade é um grande palco das divergências. Todo semestre, com a chegada dos calouros, vêm à tona diversas formas, muitas antagônicas, de receber esses novos integrantes. Não faltam atividades para marcar esse ritual de iniciação, que vão das festas universitárias ao trote – este não raro carrega em si diversas formas de opressão, como o machismo e a homofobia. A Universidade se preocupou muito nos últimos anos em panfletar contra essas modalidades de violência, porém projetou poucas estratégias concretas para superá-las.

Felizmente, nascem do movimento estudantil propostas para fazer da chegada de novos estudantes momentos de verdadeiro acolhimento. Inspirados pela construção de vivências e estágios na realidade do SUS e em assentamentos de reforma agrária, estudantes de diversos cantos do país desenvolveram as primeiras ações. O eixo básico da metodologia consistia em visitas aos serviços de saúde, realizando o debate crítico do sistema de saúde brasileiro, aliado ao papel da Universidade neste contexto.

Dessas experiências bem-sucedidas, somadas à articulação já existente do movimento estudantil, nasce na UFMG, em 2007, uma recepção unificada dos cursos da saúde. Era latente a vontade de ressaltar uma identidade maior, para além de um ciclo básico no ICB: eram estudantes que, do amontoado de cursos de origem, fizeram a interdisciplinaridade na prática.

A forma era singular e já começava muito antes da primeira semana de aula. No ato do registro acadêmico, munidos de pranchetas e panfletos, os veteranos estabeleciam o primeiro contato com o calouro, apresentando a recepção. Ainda era necessário o reforço do convite no período que antecedia as aulas, afora todo o processo de construção em si. Pautada no protagonismo estudantil, a acolhida sempre demandou intenso trabalho de organização, como garantir os locais de visitas, transporte, alimentação e o próprio cancelamento de aulas nos dias das atividades. Mas a ansiedade pelo dia da recepção era maior que qualquer possibilidade de cansaço.

É por meio das demandas sociais que aprendemos a articular com outros profissionais, a estreitar laços com todos os setores da comunidade acadêmica e a construir novas formas de receber os calouros, saindo do lugar-comum da sala de aula

Antes realizada em dois dias, hoje em apenas um, essa atividade ainda tem como eixo básico as visitas aos serviços de atenção primária, estendidas às unidades de saúde mental e controle de zoonoses. Também ocorrem visitas a comunidades e ocupações urbanas, a fim de discutir com elas os conflitos do acesso à saúde e seu próprio conceito, para além da ausência de doenças. Ainda são construídos espaços de socialização e discussão das impressões dessas visitas, complementados pelo debate sobre a Universidade enquanto local de formação, produção e reprodução de ciência e o papel que ela cumpre (ou deixa de cumprir) na saúde pública. Espaços que se diferenciam não só pela pauta como pelo formato das discussões, que oferecem aos estudantes de diferentes cursos a oportunidade de se expressarem em condições de igualdade.

O debate sobre a saúde pública não se dá ao acaso. Parte de uma análise do movimento estudantil, dentre tantos atores, sobre o quanto nosso sistema de saúde é atacado cotidianamente, tanto na mídia ou mesmo na universidade. A disputa é grande, afinal transformar um direito histórico em mais uma mercadoria é o sonho do setor privado. Não alimentamos demagogias e ilusões quanto ao SUS, mas não podemos reduzir seus problemas às longas filas e deficiências de gestão. Entendemos que há grande entrave no financiamento, além das desigualdades que transformam nosso país em celeiro de contradições sociais. É o mesmo entendimento da 8ª Conferência Nacional de Saúde (marco histórico na construção do SUS), na qual saúde é definida como resultado das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e a serviços de saúde.

Entendemos também que a saúde deve ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. O primeiro passo é a organização, com a qual é possível apresentar alternativas para nossa formação, para que ela, de fato, se oriente pelas demandas sociais. É por meio delas que aprendemos a articular com outros profissionais, a estreitar laços com todos os setores da comunidade acadêmica e a construir novas formas de receber os calouros, saindo do lugar-comum da sala de aula. Não há consenso na Universidade quanto a essas definições; afinal, como já dito, ela é um grande palco da divergência. A recepção dá um pontapé inicial no debate que acompanhará o estudante em todo o seu percurso.

De 2007 até hoje, essa recepção unificada ocorre com diversos avanços e tropeços. O que reforça essa continuidade é a autocrítica; é ela que nos impede de seguir uma fórmula-padrão. Urge o desafio de reconstruir e repensar tal processo a cada semestre. Fica aqui o convite para participar dessa reflexão.

*Estudante do 10º período do curso de Medicina Veterinária da UFMG