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Nº 1790 - Ano 38
17.9.2012

opiniao

Sobre o trabalho do filósofo

José Costa Júnior*

Recentemente duas propostas chamaram a atenção para a natureza e a prática da filosofia. Travadas em campos distintos, elas nos dizem o quão amplo é o entendimento que se tem da atividade filosófica. No primeiro caso, Colin McGinn, professor de Filosofia da Universidade de Miami, propôs no New York Times a mudança do nome da filosofia (como disciplina acadêmica) para “ôntica”. 

McGinn afirma que “cada filósofo profissional ou estudante de filosofia sabe como é linguisticamente confuso o nome da nossa disciplina quando tratada por pessoas de fora da área”. Isso advém de uma incompreensão daquilo que o filósofo faz, o que se deve em grande parte à imprecisão do nome da disciplina, segundo o autor britânico.

Para McGinn, o nome “filosofia” vem do grego e pode ser traduzido como “amor à sabedoria”. No entanto, é utilizado de forma extremamente restritiva, pelo menos dentro da academia. Uma objeção para esse rótulo é: não são todos aqueles que atuam nas universidades “amantes da sabedoria”? Nesse contexto, os pesquisadores de outras áreas têm nomes mais adequados à sua especificidade: física, química, psicologia, entre outras. Mas a filosofia ainda é chamada pelo antigo nome muito geral de origem grega. O nome atual seria prejudicial porque postula um grande fosso entre ciências e filosofia, porém, o dicionário define ciência como “um corpo organizado de conhecimentos sobre qualquer assunto”, e a filosofia acadêmica, obviamente, está sob esse significado amplo, de acordo com a proposta de McGinn.

Assim, para McGinn, torna-se necessário mudar o nome para algo mais apropriado. O autor pensa que a terminologia mais adequada é “ôntica”, que enfatiza que a principal preocupação do filósofo é a natureza geral do ser, envolvendo o estudo da natureza da realidade, do conhecimento e da existência. Trata-se de nome grave e pesado, mas fácil de dizer, e que soa como uma ciência sólida. Desse modo, o filósofo britânico lançou a Campanha da filosofia acadêmica renomeada, “que não será tarefa fácil e originará muita resistência”.

No segundo caso, o deputado Giovani Cherini, do PDT-RS, propôs o Projeto de Lei 2533/11 na Câmara dos Deputados, que busca regulamentar a profissão de filósofo. Se aprovado, todas as ações do governo federal deverão contar com filósofos em seus quadros. O projeto propõe que órgãos públicos, “quando encarregados da elaboração e execução de suas ações, manterão, em caráter permanente ou enquanto perdurar a referida atividade, filósofos legalmente habilitados em seu quadro de pessoal ou em regime de contrato para prestação de serviços”.

Para definir quem é filósofo e quem não é, foi eleita a Academia Brasileira de Filosofia, como “a representante da filosofia e língua filosófica nacionais”. A ideia foi muito mal recebida nos círculos acadêmicos da filosofia. A Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia lançou manifesto com mais de 1.700 assinaturas em repúdio à proposta do parlamentar gaúcho.

Em relação à natureza e à prática de sua atividade, o “técnico” das ideias compreende sua disciplina como uma prática eminentemente conceitual, reconhecendo a especificidade dos problemas com que lida e a impossibilidade de resolvê-los a partir da experiência científica

A mudança defendida por McGinn busca, entre outras coisas, retratar adequadamente o que o filósofo faz. Talvez um trabalho de divulgação pudesse ter o mesmo efeito desejado pelo autor, sem que haja necessidade de alteração do nome da disciplina. Entretanto, a proposta tem o mérito de mostrar a atividade desenvolvida pelo profissional da filosofia. Já o projeto do deputado brasileiro compreende a filosofia como uma prática para “iniciados”, sem mostrar nem definir como se dá essa prática ou essa atitude. Aqui, o “filósofo” parece um indivíduo diferente, com acesso privilegiado à verdade e certo caráter de infalibilidade, certificado por uma instituição sem o reconhecimento acadêmico. No entanto, o filósofo não é um indivíduo infalível e prontamente sábio, justamente por não ter acesso privilegiado à verdade.

Definir o trabalho do filósofo como o de um “técnico” das ideias, noção que configura o trabalho daquele que analisa e reorganiza conceitos, esboça novas possibilidades ou cria alternativas teóricas para torná-lo mais proveitoso. Em relação à natureza e à prática de sua atividade, o “técnico” das ideias compreende sua disciplina como uma prática eminentemente conceitual, reconhecendo a especificidade dos problemas com que lida e a impossibilidade de resolvê-los a partir da experiência científica. Para isso, um rigoroso raciocínio e um conhecimento das regras da lógica são indispensáveis.

Tal profissional reconhece a relevância da história, as implicações sociais e políticas das ideias, reforçando sua importância na vida do homem. Porém, como já dito, trata-se de um ser humano, portanto, falível. Desse modo, necessita do diálogo com seus pares e com a sociedade em geral para desenvolver sua técnica e apurar seus pressupostos e raciocínios. Isso leva a concluir que sem debate e diálogo não há filosofia.

Mesmo com a diversidade de posições acerca do que é e de como se faz filosofia, podemos ter uma visão do profissional da disciplina como aquele que busca conhecer, organizar e desenvolver as ideias e conceitos gerais que organizam e fazem sentido para a nossa vida e realidade. Tentar entender o que nos faz ser o que somos e o nosso lugar na realidade, além do que é a própria realidade, parece ser uma das atividades mais importantes que animais falíveis como nós podemos desenvolver.

*Doutorando em Filosofia na UFMG