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Nº 1791 - Ano 38
24.9.2012

opiniao

Cotas: legitimidade em formação

Marcelo Sevaybricker Moreira*

No início de agosto, o Senado brasileiro aprovou, com apenas um voto contrário, o Projeto de Lei 180/2008, referendado anteriormente na Câmara dos Deputados, que assegura que pelo menos 50% das vagas das universidades federais sejam reservadas a grupos desfavorecidos socialmente, sendo metade delas para estudantes negros, pardos e indígenas e a outra metade para aqueles que cursaram todo o ensino médio em escola pública e cujas famílias tenham renda mensal de até um salário-mínimo e meio.

O projeto depende agora da sanção da presidente Dilma Rousseff, que vê com bons olhos a medida, encaminhada pelo seu próprio partido, o PT. Mais uma vez, o circo pegou fogo. Isso porque em abril passado uma intensa polêmica já se formara quando o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade das cotas raciais.

Todavia, a polêmica agora se mostra menos intensa e mais direcionada para a questão da autonomia universitária, supostamente
ameaçada por tal medida. É certo que muitos retomaram as críticas de que as cotas são injustas por tratarem os cidadãos brasileiros de modo diferenciado, de que seus critérios de seleção são questionáveis etc. Porém, a a escassez agora de editoriais inflamados contra esse tipo de medida e a aprovação quase unânime do projeto no Senado contrastam com o quadro político do início do ano ou de antes, quando da tramitação e aprovação do Projeto de Lei das Cotas Raciais (73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000).

O que essa transformação de cenário sugere é que as políticas de discriminação positiva estão deixando de ser simplesmente um mecanismo político legal para se tornar algo legítimo do ponto de vista da opinião pública brasileira. O observado exercício regular da democracia brasileira – a aprovação desses diferentes projetos de lei nas diversas instâncias do Estado brasileiro – concomitante ao amplo debate público sobre esse tipo de política revela, ao que parece, relativo amadurecimento político tanto de nossos parlamentares quanto da população em geral. É preciso destacar como, nesse sentido, as decisões das duas casas do Legislativo brasileiro convergem com um anseio popular de maior inclusão social, fato raro num país em que as ideias de nação e Estado são tradicionalmente divorciadas.

Mas tal processo não é isento de ambiguidades e tensões. Como revelam pesquisas realizadas pelo Datafolha em 2008, 75% da população brasileira concorda totalmente com a criação de medidas de cotas para alunos pobres nas universidades públicas independentemente da raça e 11% assentem parcialmente com a ideia. Os mesmos levantamentos indicam ainda que 62% acreditam que as cotas raciais podem gerar atos de racismo e 53% entendem que elas constituem mecanismo “humilhante” para negros e pardos.

É por meio de debate amplo e democrático que as políticas de cotas raciais podem adquirir maior legitimidade ao longo do tempo

Seria preciso repetir essa pesquisa agora, quatro anos após todo esse debate em torno da cotas raciais e sociais a fim de aferir se esse quadro se mantém. No entanto, um palpite realista sugeriria que a desconfiança de grande parte da população brasileira em relação à adoção de cotas raciais não deve ter diminuído tanto, haja vista a larga temporalidade intrínseca à mudança da cultura política.

Talvez seja precisamente a junção dos critérios raciais e sociais no PL 180/2008 que explique, em parte, sua absoluta aprovação no Congresso e o seu pequeno impacto negativo na imprensa. Ainda no plano das hipóteses, os formuladores do referido PL podem muito bem ter levado isso em consideração ao unir os critérios “raça” e “condição social” numa mesma proposta, procurando legitimar a medida como um todo com base na concordância majoritária com o segundo critério.

De qualquer modo, para além somente da questão estratégica, faz-se necessária a permanente discussão da questão racial brasileira, abordada pelos nossos grandes pensadores, de Joaquim Nabuco a Guerreiro Ramos, passando por Florestan Fernandes e Abdias Nascimento. É por meio de debate amplo e democrático que as políticas de cotas raciais podem adquirir maior legitimidade ao longo do tempo.

Nesse sentido, já tomando partido no debate, sem, entretanto, prescindir da crítica, é mister considerar que as políticas de afirmação positiva devem ser compreendidas à luz de três princípios básicos de justiça. Em primeiro lugar, a questão da justiça redistributiva, que garante acesso equânime aos bens produzidos em sociedade, entre eles a educação, fundamental no acesso aos melhores postos de trabalho.

Em segundo lugar, emerge o princípio do reconhecimento à diversidade cultural dos povos. A afirmação da identidade negra contida na declaração de um candidato a uma vaga na universidade expressa não um “racismo às avessas”, mas o direito democrático de todo grupo social de se diferenciar dos demais, sem hierarquizá-los, com base em sua cultura e história específica, no caso dos negros, pardos e indígenas do país fortemente marcadas pela violência e exclusão praticadas e/ou consentidas pelo Estado.

Por fim, o princípio da reparação, segundo o qual os indivíduos prejudicados pelo poder público ou privado devem ser compensados não apenas materialmente, mas simbolicamente com o reconhecimento notório do erro.

Longe de criar uma situação de exceção, particularista, as cotas raciais e sociais constituem instrumento necessário, ainda que limitado, para a efetiva universalização da cidadania e maior legitimidade da democracia em nosso país. 

*Doutorando em Ciência Política na UFMG e professor de Filosofia do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-MG), campus Contagem