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Nº 1792 - Ano 39
1.10.2012

opiniao

A Universidade e o genocídio dos povos Guarani e Kaiowá

César Guimarães, André Brasil, Leda Martins, Luciana de Oliveira, Roberto Andrés, Rosangela de Tugny e Wellington Cançado*

Em maio de 2012 o professor César Guimarães, ao caracterizar a noção de “bem comum”, em torno da qual propunha construir a 44ª edição do Festival de Inverno da UFMG, ofereceu-nos a seguinte reflexão:

Faz pouco tempo, o crítico e curador Simon Sheikh reivindicou que as exposições de arte, tão obedientes à agenda neoliberal, não fossem apenas propriedade do capital, mas também espaços de invenção de novos horizontes de mundo, guiados pelos potenciais de emancipação e esperança das lutas sociais. Longe, muito longe dos espetáculos em que se transformaram as grandes exposições de arte, incluímos no 44º Festival de Inverno da UFMG a participação dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul. Submetidos à violência e à pressão econômica exercida pelo agronegócio na região em que vivem, munidos somente do seu maracá e dos cantos, os índios enfrentam o coração endurecido dos brancos, rezando para que a terra floresça e as crianças proliferem (tal como se expressa um dos xamãs no documentário Mbaraká: A palavra que age).(...) No Brasil de hoje, os índios, os habitantes de comunidades quilombolas, ribeirinhas ou extrativistas são os que mais corajosamente se opõem à dilapidação sistemática da propriedade coletiva (conduzida tanto pelas empresas particulares quanto pelo Estado). Em seu anonimato, vivendo em condições adversas, são eles que fazem valer concretamente, em sua existência cotidiana, o slogan do Ministério da Cultura: “Patrimônio imaterial, bem do Brasil”.

De fato, em julho de 2012, os coordenadores do Festival de Inverno da UFMG recusaram ativamente os espaços e formatos guiados pela lógica da espetacularização, que despotencializa o que professores, artistas, mestres das culturas tradicionais e intelectuais brasileiros têm a fazer e a dizer quando estão juntos. O Festival foi experimentado à maneira de um ritual no qual os sentidos elaborados, tornados expressões, são intensificados e compartilhados. Foram proferidos cantos e histórias em várias línguas faladas cotidianamente no Brasil, e inúmeros participantes descobriram, maravilhados, a possibilidade de multiplicar as janelas do conhecimento e as formas de viver.

Durante o encontro com nossos convidados Mbya Guarani, do Paraná e Rio Grande do Sul, e Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, fomos arrebatados por seus cantos, pela sua rigorosa forma de expressão, pelas suas “belas palavras”, pela generosidade com a qual nos transmitiram conhecimentos sobre a cura e o uso da terra, das águas, das plantas e do céu. Aprendemos um pouco mais sobre a longa e rica história dos povos guaranis por todo o território brasileiro, cujas marcas ficaram perenes nos nomes de rios, montanhas, cidades, ruas, alimentos, peixes e de tantas espécies de animais e plantas, nomes que cotidianamente pronunciamos. Mas, para além do arrebatamento, ficamos estarrecidos, silenciados, indignados ao tomar conhecimento do que se passa hoje em Mato Grosso do Sul.

Nossos convidados relataram o trabalho degradante, e muitas vezes escravo, a que são submetidos homens e mulheres – jovens e crianças – nos campos de cana-de-açúcar para a produção do etanol, hoje chamado pelos seus produtores de “energia limpa”. Ouvimos o relato sobre as prisões de mais de 200 jovens guaranis que, por vezes, sequer sabem o que fazem por lá ou compreendem a língua portuguesa.

Ouvimos com preocupação seus relatos sobre a degradação ambiental que transforma o estado do Mato Grosso do Sul em extenso campo de soja e cana-de-açúcar, poluindo os rios com agrotóxicos. Nossos convidados relataram o assassinato de seus avós, pais, amigos, grandes intelectuais da civilização guarani. Desde meados dos anos 1970, quando centenas de famílias guaranis e kaiowás foram expulsas de suas terras e confinadas em reservas na região sul de MS, próximas a cidades como Dourados, Caarapó e Amambai, muitos indígenas se revoltaram contra essa imposição e resolveram retomar seus tekoha – “o lugar onde se pode viver do nosso modo”, ou terras sagradas. Mais de 250 sábios, lideranças, mulheres e crianças foram assassinados impunemente, além de terem ocorrido outras 200 tentativas de assassinato.

Lamentamos o triste relato da epidemia de suicídio entre os jovens guaranis, muitos deles entre 12 e 16 anos, com números de mortes comparáveis às maiores taxas do mundo nos últimos anos. Escutamos o que nos disseram sobre a falta criminosa de atendimento médico ou os frequentes atropelamentos dos guaranis nas beiras de estradas. Todos esses relatos mostram, de maneira estarrecedora, como esses nossos pares intelectuais, defensores incansáveis de tão rico patrimônio ambiental, humano e cultural, são tratados de modo desumano e devastador.

Como professores universitários, pensadores e artistas, denunciamos o modelo de conhecimento que hoje ampara os expropriadores de terras e que faz com que a região do país com o maior índice de desenvolvimento econômico seja também o lugar onde se pratica, aberta e impunemente, o genocídio contra uma população indígena, algo extremamente vergonhoso para a história do Brasil. Esse modelo de conhecimento está destruindo centenas de formas de vida de uma das mais belas regiões do nosso país.

*Coordenadores do 44º Festival de Inverno da UFMG