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Nº 1808 - Ano 39
18.2.2013

opiniao

O Ars Nova e a vocação de Minas para o canto coral

Lincoln Andrade*

Nasci em Leopoldina, interior de Minas Gerais, e, na década de 1970, minha família teve a oportunidade de mudar-se para Brasília, cidade ainda coberta pela nuvem vermelha da poeira das construções, imersa em profunda repressão e estéril aridez proporcionadas pela ditadura militar. Assim que lá cheguei, fiz um teste e fui convidado a cantar em um coral de adolescentes regido pelo lendário maestro Nelson Mathias. Era o Coral do Sesi de Brasília, formado e patrocinado pelo Serviço Social da Indústria e que tinha o objetivo de oferecer oportunidades a jovens moradores de uma cidade sem atrativos culturais de terem contato com algum tipo de arte, no caso, a do canto coral. Graças à dedicação de seu maestro e integrantes, todos jovens, o coral atingiu excelente nível musical. Fizemos vários registros de nossas apresentações, fomos convidados a participar de programas de televisão, viajamos a várias partes do Brasil, enfim, tornamo-nos um coral famoso e respeitado na época.

Em 1976, o Coral do Sesi de Brasília foi convidado a participar de um festival comemorativo dos 25 anos do Coral da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, regido por outra lenda, o maestro Arlindo Teixeira. Entre os poucos convidados, estava o Coral Ars Nova, de Belo Horizonte, regido pelo célebre maestro Carlos Alberto Pinto Fonseca, para mim, na época, ilustre desconhecido. Lembro-me de que fazíamos o ensaio de reconhecimento no Teatro do Salão de Atos da UFRGS e cantávamos Ponto de Oxum e Yemanjá, obra composta pelo maestro Carlos Alberto. Em um determinado momento, vi uma silhueta esguia aproximar-se do palco e dirigir-se ao nosso regente que, imediatamente, parou o ensaio. Ouvi o maestro Carlos Alberto dizer: “Vocês estão de parabéns. Cantam minha música de forma magnífica! A partir de hoje, o Ars Nova não a canta mais! Ela é de vocês!” Ecoou um silêncio profundo no teatro, e, confesso, saí do palco sem entender direito o que tinha acontecido.

Naquela mesma noite, o Coral do Sesi de Brasília fez a sua participação no Festival. Em seguida, os cantores fomos para a plateia apreciar os outros grupos. O Ars Nova seria o último coral da noite. Veio, então, o meu primeiro contato com aquele intrépido grupo, famoso pela maneira de fazer música coral. Entre obras de Bruckner, Brahms, Villa-Lobos e do próprio Carlos Alberto, eu assisti a um concerto que me colocou frente a frente com a música coral vibrante, feita de fraseados, de contrastes de dinâmicas, de precisão rítmica, de afinação absolutamente relativa. Aí eu fui entender o valor do elogio feito no ensaio da tarde, da responsabilidade de ser o intérprete de um compositor exigente, de um maestro detalhista, de um grupo que tinha como meta a perfeição, a excelência. Assim, eu decidi que tal objetivo eu também buscaria, como se as palavras do maestro, de alguma maneira, ainda ecoassem em meus ouvidos.

O Coral do Sesi de Brasília encerrou suas atividades no final da década de 1970, e muitos anos passaram-se. Em 2005, quando vim fazer o concurso para professor de regência na Escola de Música da UFMG, tive a honrosa presença do maestro Carlos Alberto na audiência de minha prova prática. Regi parte do “Glória”, da Missa afro-brasileira, de sua autoria, obra exemplar e obrigatória no repertório coral brasileiro. Depois da prova, lembrei ao maestro o episódio daquela tarde de ensaio de 1976. Ele me confidenciou: “Procurei manter a minha palavra!” Pouco tempo depois, o maestro deixava-nos, mas ficavam suas composições e as interpretações memoráveis do Coral Ars Nova. Em 2006, em viagem pela Alemanha e pela Polônia, encontrei Sonya Greiner, secretária-geral da organização Europa Cantat, responsável pelo direcionamento e pelo agenciamento da música coral em todo o continente europeu. Ela fez, de imediato, a primeira pergunta: “Como vai o maestro Pinto Fonseca?” Fui o portador da notícia de seu falecimento então recente, e permanecemos em respeitoso silêncio. Em seguida, ela continuou efusivamente: “O Ars Nova foi um dos grupos corais mais espetaculares que eu já ouvi até hoje!“ O silêncio transformou-se em orgulho, e, por pouco, não virou o eufórico “Yes!“. Entendi, por aquela afirmação, qual seria o maior legado de Carlos Alberto, mas, principalmente, o de um dos maiores, senão o maior, grupo coral de nossa história recente. Depois de breve hiato, em que o Coral Ars Nova, por várias razões, interrompeu suas atividades, vejo o retorno dos ensaios e das apresentações do grupo como uma retomada da excelência na música vocal e coral que enfatiza a precisão técnica, a beleza estética, a sonoridade inovadora, a interpretação revolucionária, a condução ousada. Foi breve parada para alguns, mas longa o suficiente para nós, fãs, admiradores e influenciados por esse grupo de projeção artística sem fronteiras. Que o Coral Ars Nova, da UFMG, de Belo Horizonte, de Minas Gerais e do Brasil volte a cumprir a sua função de fomentar e absorver um mercado de cantores, a formar novas lideranças vocais, a divulgar a música vocal brasileira, a desempenhar, junto com outros grupos atuantes na cidade e no estado, o papel fundamental de consolidar a vocação natural de Minas Gerais em liderar a produção da música vocal e coral brasileira.

*Professor de regência da Escola de Música da UFMG e regente titular do Coral Lírico de Minas Gerais