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Nº 1836 - Ano 39
16.09.2013

Alegoria que encanta

Semana de Música Antiga tem concertos, cursos e conferências de nomes de destaque no Brasil e no exterior

Itamar Rigueira Jr.

Sacabuxa, traverso, teorba, viola da gamba. Esses e outros termos, e mais uma série de conceitos, vão parecer menos distantes a partir dos próximos dias, quando a UFMG realiza a IV Semana de Música Antiga (20 a 29 de setembro). A programação, recheada de músicos e estudiosos brasileiros e estrangeiros consagrados, prevê conferências, aulas, apresentação de trabalhos e muitos concertos – todos eles gratuitos, em Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana, Sabará e Tiradentes. A música produzida sobretudo na Idade Média, no Barroco e na Renascença será tratada também em sua relação com a história, a arquitetura, a filosofia e as letras, entre outros campos. E o enfoque estará em sua capacidade de causar estranhamento e remeter a diferentes universos – o tema desta edição é bizzarie alegórica.

Realizada bienalmente desde 2007, a Semana não se modificou na essência e no formato, apenas tem se ampliado. “Nosso objetivo, além de desmitificar a música antiga, que muitos músicos modernos consideram ‘mais fácil’, é mostrar a qualidade do trabalho feito em diversas partes do mundo e criar espaços de discussão e divulgação das pesquisas na área que têm aumentado significativamente”, diz a coordenadora geral do evento, professora Iara Fricke Matte, da Escola de Música da UFMG.

Ela lembra que o movimento de resgate da música antiga, iniciado nos anos 1960, nos Estados Unidos e na Europa, chegou ao Brasil bem depois, e ainda ganha força devagar. Há eventos importantes em cidades como Juiz de Fora e Curitiba, mas a Semana da UFMG alia de forma inédita a teoria e a pesquisa à execução musical. “Nosso olhar para a música anterior ao século 20 é contextualizado, considerando o que arquitetos, poetas e filósofos produziram paralelamente nas diversas fases”, explica Iara. Ainda segundo a coordenadora, alguns musicólogos, com base em dados históricos, incluem a música do Classicismo (de Mozart e Haydn, por exemplo) na definição de música antiga, já que não apenas se utilizavam instrumentos diferentes dos modernos, como a maneira de interpretar era distinta da atual, como acontece com a música barroca de Bach, Haendel e Vivaldi.

“A Semana continua pretendendo gerar informação e promover formação para inspirar a produção ligada à música antiga no Brasil”, afirma a professora, comentando que a edição de 2013 abre mais espaço para a música latino-americana e espanhola.

Arcos e escalas

A sacabuxa (trombone barroco), o traverso (flauta transversal de madeira), a teorba (espécie de alaúde) e a viola da gamba (instrumento de arco friccionado) são de um tempo em que se tocava em salas das cortes e capelas, para poucos. “No início do século 17, os instrumentos passam a precisar de sons diferentes, para adequarem-se a teatros e públicos maiores, e a linguagem musical começa também a mudar, já que não bastava agradar ao rei”, comenta Iara Fricke Matte.

Ao longo do evento, será possível conhecer, entre tantos outros aspectos, as diferenças entre os arcos dos violinos antigos e modernos, e aprender que a afinação que respeita a escala de 12 tons (sete notas, mais os semitons) não foi sempre dividida igualmente. “O Barroco e o Renascimento exploraram a ideia de temperamento, uma divisão da escala que trabalhava o afeto, influenciando a recepção da música de formas diversas – inspirando alegria, melancolia e outros estados e sentimentos”, diz Iara, acrescentando que eram muito variados os recursos expressivos e as experiências que os músicos se permitiam, o que levou à criação de instrumentos inusitados, que não sobreviveram aos dias de hoje, como é o caso do archicembalo, inventado por Nicola Vicentino em 1555, que dividia o tom em cinco notas.

Diretora e regente do Ars Nova – Coral da UFMG, Iara Fricke Matte estará à frente do grupo mais uma vez para o concerto de abertura da Semana (dia 20, no Teatro Bradesco). O repertório será composto de madrigais do italiano Carlo Gesualdo (1566–1613), que encarna à perfeição o tema do evento deste ano. “Como tinha muitas posses e era o próprio patrocinador, Gesualdo podia se dar ao luxo de dar asas à criatividade. Ele punha a poesia em primeiro lugar, e para priorizar a expressão do texto se permitia quebrar regras de composição musical. É um legítimo representante da bizzarie alegórica”, conta a coordenadora.

Arte provocadora e ousada

Mimesis, stravaganza, ibizzarie, meraviglia, maneirismo, agudeza de artifício e alegoria são alguns dos conceitos que serão discutidos nas exposições dos teóricos da música, arquitetura, teatro, literatura e filosofia que vão dialogar com a experiência estética proporcionada pelas performances e concertos, de acordo com texto de apresentação da Semana de Música Antiga. Os organizadores destacam que “o tema bizzarie alegórica remete à representação abstrata do real através de imagens ou efeitos fantásticos, de relações inesperadas ou artificiosas que resultam em momentos de encantamento ou estranheza, liberadores do imaginário do artista e do espectador”. A arte bizarra, completa o texto, “é provocadora, irreverente e ousada para sua época”.

Foca Lisboa
ICecília Coelho: conhecer significado de alegorias favorece apreciação estética
Cecília Coelho: conhecer significado de alegorias favorece apreciação estética

“O recurso a alegorias está presente com força em diferentes universos, como o da poesia greco-romana e medieval ou o da teologia”, lembra a professora Maria Cecília Coelho, do Departamento de Filosofia, que coordena a programação científica da Semana. A variedade de enfoques e relações possíveis rege a grade de palestras e cursos. O musicólogo da Universidade de Yale Gary Tomlinson tratará do madrigal em sua aula magna, no evento de abertura, discutindo questões como a da influência do neoplatonismo e da magia na música na Renascença. João Adolfo Hansen, professor de literatura colonial brasileira na USP e especialista nas obras de António Vieira e Gregório de Matos, vai analisar os diversos significados do termo alegoria. Alegorias e bizarrices: da caverna ao carnaval será o tema de mesa que vai reunir o arqueólogo e historiador Fabio Vergara (Universidade Federal de Pelotas), que estuda cultura e música gregas, e a professora de teatro Fátima Lima (Universidade do Estado de Santa Catarina). “A conversa vai explorar tanto a imagem alegorizante da famosa “caverna de Platão” como a utilização que faz o Carnaval da ideia de alegoria”, explica Maria Cecília.

Outra mesa vai tratar de Mitos, metamorfoses e alegorias na literatura e ópera. “Mitos, como os de Orfeu – sua descida aos infernos em busca de Eurídice, ou a transformação de sua lira em constelação – podem ser lidos como narrativas simbólicas, portadoras de significado a ser interpretado, seja pela análise hermenêutica ou retórica”, diz a professora da Fafich. A mesa vai reunir o helenista Jacyntho Lins Brandão, da Faculdade de Letras da UFMG, Silvana Scarinci, professora de teorba e de história da música da Universidade Federal do Paraná, e Barbara Cipollone, pianista, cravista e professsora de história da música na Università di Bologna, Itália.

Além das atividades em Belo Horizonte, alguns palestrantes estarão em Tiradentes, onde haverá mesa-redonda sobre Orfeu e a ópera, com Fábio Vergara e Silvana Scarinci, e duas palestras: O outro lado da mimesis, de Thiago Saltarelli, recém-doutorado pela UFMG, e O decoro na arquitetura colonial, de Rodrigo Bastos (Universidade Federal de Santa Catarina). “A mediação de especialistas é importante para que possamos compreender o significado dos símbolos e alegorias, visando a maior apreciação estética, por meio de educação mais precisa do olhar e do ouvir”, ressalta Cecília Coelho, que destaca também as mesas com sessões de comunicação: “São 16 trabalhos que mostram a variedade de temas de pesquisa e dão visibilidade aos estudos em música antiga nas universidades brasileiras”.

O evento terá ainda palestras direcionadas a músicos, como a do veterano Hopkinson Smith, considerado o papa do alaúde, que fez importante trabalho de resgate do instrumento; e do virtuose do violino barroco Luis Otávio Santos, que já atuou com algumas das mais importantes orquestras barrocas europeias. Grupos como o Capella de Ministrers (Espanha) e o Musica Ficta (Colômbia) oferecerão, além de concertos, minicursos e oficinas sobre temas como interpretação de música medieval e música latino-americana.

“A experiência de aprendizado na música é muito baseada na vivência, na audição, e temos critérios muito rigorosos para o convite a músicos e professores”, salienta a musicista Leticia Bertelli, coordenadora artística e pedagógica da Semana. “Muitos dos músicos que vão se apresentar são também professores, como dois dos membros do grupo Concerto Soave, da França”, ela exemplifica.



Estes são alguns dos eventos da IV Semana de ­Música Antiga. A programação pode ser conferida em semanamusicaantiga.wordpress.com.

Concertos
Capella de Ministrers (Espanha)
Dia 20, às 20h30, no Teatro Bradesco

Ensemble Caliophon (Noruega)
Dia 21, às 20h30, na Casa da Ópera de Ouro Preto

Lars Henrik Johansen (Noruega), órgão solo
Dia 22, às 12h15, na Catedral da Sé de Mariana

L. Otávio Santos (violino barroco) e Claudio Ribeiro (cravo)
Dia 22, às 20h30, no Conservatório UFMG

Barroco para Crianças (Estúdio Barroco)
Dia 25, às 14h30, na Escola de Música

Concertos de professores da Semana de Música Antiga
Dias 25, 26 e 27, no Conservatório e no Teatro Municipal de Sabará

Palestras, cursos etc.
Aspectos e harmonizações das afinações históricas para teclados
Edmundo Hora, da Unicamp
Dia 22, às 9h, no Conservatório

O decoro na arquitetura colonial (itinerante)
Rodrigo Bastos, da Universidade Federal de Santa Catarina
Dia 29, às 15h, em Tiradentes

Cordas dedilhadas (alaúde, teorba)
Hopkinson Smith, Suíça
23 a 28 de setembro, das 9h às 12h

E mais:
Encontro com os lutaios
Dia 21, às 10h30, no Conservatório
Fernando Ferreira e Roberto Guimarães (Brasil), e Rudolf Tutz (Alemanha)

Baile de máscaras
Dia 28, às 20h30, no Espaço CentoeQuatro