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Nº 1841 - Ano 40
21.10.2013

opiniao

A latino-americanização do Brasil

Antonio Mitre*

Para quem acompanhou a trajetória do Brasil desde os anos 1970, chama a atenção, hoje, um fenômeno que pode ser qualificado, em certa medida, como latino-americanização do país – entendida não apenas como o estabelecimento de nexos econômicos com os Estados da região, mas, sobretudo, como o surgimento de um discurso político que decididamente insere a identidade do Brasil na matriz latino-americana. Esta não é uma questão banal, haja vista a histórica separação do Brasil com relação à América Hispânica – fato que tem sido salientado insistentemente tanto pela cartografia historiográfica como pelo discurso da intelligentsia política.

Mas é mister lembrar que a incorporação do Brasil ao horizonte das repúblicas ­hispano-americanas é também uma tendência recente. O caso emblemático, nesse sentido, é precisamente a Argentina, que não só passou de vizinho incômodo a parceiro estratégico do Brasil, mas também mudou o discurso de país mais europeu da região para outro em que a pertença à matriz latino-americana é destacada pelas fontes oficiais e pelos movimentos sociais. Em síntese, a aproximação se deu a partir dos dois lados da equação e de motivações distintas.

A latino-americanização é igualmente visível no ambiente universitário brasileiro, onde é cada vez maior o número de professores que desenvolvem parcerias com pesquisadores da região ou que incorporam, na sua matriz empírica e comparativa, a experiência dos países hispano-americanos. Também é maior a aproximação dos estudantes à língua e à cultura dos países vizinhos, via convênios de intercâmbio, ou fazendo por conta própria, como recomendava Rousseau no Emilio, uma viagem para culminar sua formação, seja pela estrada dos incas, escalando as alturas do Machu Picchu, ou numa peregrinação a Cuba em busca de algum sonho perdido de seus pais e avós.

Essas mudanças são fruto de longo processo que contempla variáveis de natureza socioeconômica, cultural, tecnológica e institucional, tanto no âmbito doméstico como internacional, que não é o caso de revisitar agora. Mas para que não fique tudo em mãos da chamada globalização recente, propiciada, entre outras coisas, pela extraordinária revolução nos meios de comunicação, vale a pena mencionar brevemente alguns antecedentes. Primeiro, o papel que tiveram instituições-chave como a Cepal, que, nas décadas de 40 e 50, congregou hispano-americanos e brasileiros da estatura intelectual e moral de um Celso Furtado e de outros que, na elucidação das causas do subdesenvolvimento, consideraram a América Latina não só uma unidade analítica, mas uma união a ser construída politicamente pelos Estados. Em segundo lugar, eventos políticos dramáticos, como a revolução cubana que, nos anos 60, na esteira do pensamento de José Martí, suscitou o encontro e o estabelecimento de vínculos entre intelectuais brasileiros e hispano-americanos em torno da Casa das Américas e da revista Pensamiento Crítico.

Cabe lembrar também o chamado boom da literatura latino-americana que, na mesma década, levou Guimarães Rosa aos países hispânicos e trouxe para os leitores brasileiros uma safra de brilhantes escritores como García Márquez e Julio Cortázar, sem esquecer o trabalho silencioso e perseverante de intelectuais como Ángel Rama e Emir Rodriguez Monegal, dois nomes contrapostos ideologicamente que, junto com Antonio Candido e Haroldo de Campos respectivamente, construíram parcerias que redundaram na abertura de vias de comunicação e conhecimento mútuo entre hispano-americanos e brasileiros no contexto da cultura universitária. Outro fator refere-se à guinada da política externa brasileira efetivada, por motivos econômicos e políticos, na fase terminal do regime militar.

A internacionalização da economia brasileira nas décadas de 60 e 70 explica, em parte, a orientação para o Sul, impulsionada pela busca de mercados regionais; mas houve outros fatores intervenientes, entre eles a ruptura, durante a presidência de Ernesto Geisel, do acordo de assistência militar com os Estados Unidos, em função das pressões do governo Carter sobre direitos humanos. Foi na sequência desse distanciamento com relação ao Norte que avançou a pauta ­cooperativa com o Sul, sustentada, em graus crescentes, por mecanismos institucionais. Por outro lado, o regime autoritário reativou, sobretudo na sua fase mais truculenta, um dispositivo estrutural da política latino-americana até então, que veio a ter um impacto extraordinário sobre o tema aqui tratado: o exílio, que levou parte de uma geração de intelectuais brasileiros à convivência em países hispano-americanos ou europeus,onde desenvolveram um senso de identidade e vínculos de solidariedade continental que logo seriam reforçados politicamente por eles próprios, quando passaram a se constituir em governo ao longo da terceira onda democrática. E foi assim que o interesse pela América Latina acabou sedimentado no campo da economia, no discurso político e na cultura acadêmica brasileira.

*Coordenador do Centro de Estudos Latino-Americanos da UFMG