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Nº 1841 - Ano 40
21.10.2013

O Lacan chinês

Tese investiga influência da escrita poética chinesa no ensino do psicanalista

Ewerton Martins Ribeiro

O modo de funcionamento da língua chinesa causa surpresa e estranhamento ao homem ocidental. Se o idioma se caracteriza por extrema concisão, a ausência de um sentido mais precisamente fixado sugere uma incômoda ambiguidade – especialmente para quem, no hemisfério esquerdo do mundo, está acostumado com relações mais diretas e estáveis entre significante e significado. Jacques Lacan foi um pensador que se interessou por tais aspectos do idioma chinês. O psicanalista francês viajou ao Oriente, onde se viu seduzido pelas particularidades do mandarim.

O interesse de Lacan pela língua chinesa motivou a tese A interpretação analítica e a escrita poética chinesa, de Cleyton Sidney de Andrade, defendida há alguns dias no Programa de Pós-graduação em Psicologia. Cleyton se valeu da potencialidade poética da escrita chinesa como um desvio a possibilitar novo entendimento para aquilo que diz Lacan em sua obra. “No contexto do que chamo de ‘Primeiro Lacan chinês’ é possível vê-lo falar da interpretação e do ato analítico no manejo do mestre zen.” Já um ‘Segundo Lacan chinês’, diz o pesquisador, surge a partir do encontro de Lacan com François Cheng, do qual o psicanalista extraiu noções de importância visceral em seu ensino. “Tratava-se de outro momento de sua obra, em que se tornava cada vez mais lacaniano e menos freudiano.”

China é poesia

Para Cleyton, “o mandarim é uma língua que, por sua sonoridade e forma de ser escrita, é particularmente propícia para a poesia”. Justo por isso, diz, na China, a poesia faz parte da educação, dos jogos populares, do lazer, dos processos comunicativos, do dia a dia. “Nesta cultura, a brincadeira poética com os sons e com a escrita não funciona como ação isolada, restrita à literatura. Tal como os chineses a entendem, a poesia talvez seja tão popular quanto o futebol é por aqui, para o brasileiro”, arrisca. “Ela é um modo frequente de o chinês habitar sua língua.”

Sob esse mote poético, alguns aspectos do idioma motivaram Lacan, que buscava entender como os processos da língua poderiam sugerir novos caminhos para suas reflexões na psicanálise freudiana. “Trata-se de uma língua em que se pode ouvir a musicalidade mesmo sem entender uma única palavra dita. O idioma chinês porta uma indecidibilidade estrutural que cria a necessidade de se recorrer à escrita, muitas vezes até para falar”, diz.

Uma anedota ilustra tal característica. “Levei uma música para que meu professor de mandarim transcrevesse. Foi motivo de decepção e desconfiança perceber que ele não podia fazê-lo. Ele nem entendia a letra que escutava”, conta. Mas não se tratava de uma limitação do professor. “Em chinês, uma canção só pode ser acompanhada se o ouvinte estiver com a letra em mãos ou a conhecer previamente. Do contrário, entenderá apenas uma ou outra palavra mais comum, e terá de ir deduzindo o que diz a música a partir delas.” A anedota exemplifica a força que os processos de interpretação têm no idioma.

Falas diversas, escrita única

A dificuldade ilustrada pela história é fruto de uma particularidade da comunicação na China: no país, os habitantes falam diferentes línguas, entre as quais não é necessária a tradução escrita. Isso porque, se são línguas diferentes na fala, a escrita entre elas é única.

“Na história da China, os mandarins [funcionários públicos] sempre precisaram de intérpretes para se comunicar verbalmente com os súditos de locais desprovidos de educação no sistema oficial. No entanto, não precisavam de tradução escrita, já que todo o material escrito era produzido na língua oficial”, relata o pesquisador.

É um contexto que gera outras situações inusitadas, como na televisão chinesa. Nela, diz Cleyton, todos os programas são legendados, inclusive os falados na língua nacional e ao vivo – algo impensável em contexto como o brasileiro. “O código escrito reflete uma histórica política de unificação”, pontua. Essa diferença entre a língua escrita e a falada, além da ambiguidade e da equivocidade do idioma, são os eixos que possibilitam a relação entre a escrita poética chinesa e a interpretação analítica.

Tese: A interpretação analítica e a escrita poética chinesa
Pesquisador: Cleyton Sidney de Andrade
Orientador: Antônio Márcio Ribeiro Teixeira
Defesa em 27 de setembro de 2013, no Programa de Pós-graduação em Psicologia