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Nº 1845 - Ano 40
18.11.2013

Sua flecha é a palavra

Bárbara Pansardi

“Pra quem não me conhece, sou Davi Kopenawa, filho da Amazônia, que vive no meio da floresta.” As palavras simples e fortes do líder indígena são certeiras como uma flecha que acerta direto no coração – é o que ele mesmo diz. O xamã yanomami acredita que sua arma é a palavra, com a qual protege a floresta amazônica e os povos autóctones.

“Nós, Yanomami, somos guerreiros para defender nossos direitos, nosso povo, nossas crianças, nossa terra própria. Nossos antepassados não sabiam se defender, não sabiam brigar por não compreender a língua portuguesa”, explica o xamã e intérprete da Funai, que utiliza o idioma como instrumento político. “Eu não posso viver isolado. Meu povo yanomami já foi isolado. Hoje não, nós conversamos com políticos sobre o problema da nossa terra, da saúde”, afirma.

Sua mensagem é firme, mesmo quando sua expressão parece hesitar, revelando a cadência de quem não tem o português como língua materna. “Minha fala é diferente; não é fala de cidade, não. Eu falo sobre natureza, sobre meio ambiente, terra, sobre o que é bom pra nós todos”, justifica Kopenawa.

A convite do Programa Cátedras do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (Ieat), Davi veio à UFMG ensinar o que os napë [homem branco, não índio] parecem não saber. “Será que o homem não tem pensamento, não pensa em seu futuro, nas gerações que vão sofrer? Consciência dos napë é diferente da consciência indígena. Terra é nossa vida, sustenta a barriga, é nossa alegria”, alega, tecendo dura crítica às atividades econômicas que se valem da exploração das riquezas naturais.

Para Kopenawa, o problema gerado pelo homem branco com a extração dos recursos é incontornável, não há reflorestamento que o resolva. “Reflorestar não vai trazer ar limpo, não vai chamar a chuva; só miséria, fome, sofrimento”, afirma, fazendo uma analogia com as cicatrizes que se formam quando ferimos a pele, sobre as quais não voltam a nascer pelos. “Na terra, depois que corta, não cresce de novo, não nasce urihi [cobertura florestal], porque não tem força, não tem água lá embaixo. Derrama sangue da terra e ela fica seca, a água vai embora.”

Davi explica o que em sua filosofia indígena designa por “coração da terra”. De acordo com ele, trata-se de um processo cíclico segundo o qual a água é conduzida por caminhos subterrâneos que a elevam para que em seguida se precipite novamente, em movimento continuamente circular, como na corrente sanguínea. “Nós estamos circulando juntos”, acrescenta, esclarecendo que o coração humano pulsa sob mesmo ritmo. Homem e natureza, portanto, estão ligados. Então, “destruímos a nós mesmos ao devastar a terra; nosso coração bate junto com a hutukara, terra-mãe”.

Diferentes, porém complementares

O xamã acredita na capacidade de mobilizar os outros como multiplicadores de uma consciência ambiental renovada, e se alegra porque vê seu conhecimento reconhecido na esfera acadêmica. “Sou analfabeto, mas tenho saber tradicional. Eles estão me escutando e achando bom. Estão interessados, gostando muito. Eu também estou gostando. Venho para me aproximar do homem branco que nunca conheceu de mim e para conhecê-lo como amigo. Não índio também está reconhecendo minha imagem, minha fala, a experiência que eu tenho e aprendi desde pequeno.”

Entre os xamãs yanomami, boa parte dos saberes advêm do campo onírico. Os sonhos – muitas vezes associados ao transe induzido pelo sopro do pó de yãkoana [alucinógeno] – funcionam como revelações esclarecedoras. Os xapiri [espíritos] são os responsáveis por alumbrar as ideias e desvelar a sapiência do líder. Davi conta que ele próprio “sonha terra, floresta, chuva, trovão, tudo o que tem no universo”. Por isso, irrita-se com os antropólogos que, “como formigas, andam procurando sabedoria” e valem-se do conhecimento alheio. “Eu não quero antropólogo falso, que só quer trair o meu povo, que só quer aprender, tirar e copiar conhecimento yanomami”, revolta-se, em alusão à experiência com o americano Napoleon Chagnon, que trata os yanomami como ferozes e violentos.

No livro La chute du ciel, escrito em conjunto com o antropólogo francês Bruce Albert, Kopenawa conta que pediu ao xori [amigo] que o ajudasse. Como discordava dos pesquisadores que frequentavam sua aldeia e imputavam juízos sobre o modo de vida indígena, resolveu manifestar-se. “Quem vai falar sobre meu povo yanomami sou eu. Eu não sou antropólogo, mas Bruce me ajudou a escrever como no meu sonho, um sonho conhecimento. Eu queria escrever para os antropólogos da cidade, para mostrar como o Yanomami pensou. Esse livro é um mensageiro para entrar na capital. Antropólogo que não conhece índio, não conhece aldeia, não conhece mato vai ler. Esse livro foi escrito para fazer antropólogo respeitar. Foi muito bom pra mostrar minha capacitação, a capacidade que eu tenho de quem conhece rio, terra, mato”, relata.

Quanto à sua participação nas palestras ao longo da semana, o xamã mostrou-se alegre e satisfeito por cumprir a tarefa que lhe foi confiada pelos anciões. “Estou com orgulho de mim. Sou um yanomami em paz. Estou dizendo boas coisas pra eles [homens brancos] entenderem, pensarem e depois fazer respeitar. Nós somos povo indígena, guardião da terra; estamos aqui para proteger”, assevera.