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Nº 1862 - Ano 40
05.05.2014

Encarte

As crises do homem sério

Pesquisador da Comunicação investiga em livro a tensão das narrativas fantásticas com a racionalidade do saber moderno

Itamar Rigueira Jr.

Clássicos da literatura e do cinema não param de oferecer novos parâmetros para a compreensão da realidade. Obras de Kafka, Poe, Hitchcock e Buñuel testam com maestria as noções de possível, razoável e verossímil. Mas como é o que o absurdo das narrativas dos livros e das telas faz pensar a realidade de outra maneira? Essa questão mobilizou nos últimos anos o jornalista Nuno Manna, hoje doutorando do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da UFMG – sua pesquisa de mestrado gerou o livro A tessitura do fantástico: narrativa, saber moderno e as crises do homem sério , que a editora Intermeios lança em Belo Horizonte esta semana.

Interessado pela ficção não realista desde a infância, Nuno resolveu transformar essa forma de narrar em objeto de pesquisa. Primeiro, foi atrás das obras canônicas para identificar o que elas despertavam nos estudiosos. Depois mirou seu olhar sobretudo para o cinema, que segundo ele, tem sido tratado no Brasil mais pelo viés do terror e da ficção científica. E se deparou com o filme O homem sério (EUA, 2009), dos irmãos Joel e Ethan Coen, que chamou sua atenção por uma espécie de ambiguidade.

“O filme é influenciado pela tradição das narrativas fantásticas, e se aproxima delas, mas o fantástico nunca é óbvio, evidente. Ele não se encaixa na teoria”, afirma Nuno Manna. “Ele pertence a uma categoria de obras marcadas por situações bizarras, personagens anômalos e muitas dúvidas sobre a racionalidade.”

O homem sério é a história de um professor de física para quem tudo se traduz pelas leis e equações da matemática, e que vê sua vida virar de ponta-cabeça e fugir de seu controle – a mulher o troca por outro, o emprego está ameaçado de repente, os filhos dão muito trabalho. Aparecem então sintomas de doenças e exaustão, e ele procura chaves para compreender tudo aquilo na religião judaica.

Os irmãos Coen criaram várias obras com características parecidas, como E aí meu irmão, cadê você? e Barton Fink – delírios em Hollywood. “O que fascina no trabalho deles é que o fantástico está sempre prestes a invadir a cena, na mesma linha de cineastas que transitam no limite com o sobrenatural, como David Lynch, de Cidade dos sonhos, que abriga o absurdo em sua própria estrutura não linear, e Michael Haneke, de O castelo, adaptação do Kafka”, comenta o pesquisador, que produz tanto reportagens quanto textos de ficção para a revista Piauí.

Fascina e desestabiliza

Depois de descobrir e articular o que disseram nomes como Tzvetan Todorov, autor da “bíblia” Introdução à literatura fantástica, Sigmund Freud – para quem o sobrenatural é parte do inconsciente que vem à luz e reflete uma sociedade imersa em mal-estar –, Gilles Deleuze e Jean-Paul Sartre, Nuno Manna mapeou o que é emblemático no cinema, do expressionismo alemão de Fausto e Nosferatu às histórias de Hitchcock, de Drácula e Frankenstein a Fellini e Buñuel. “Em O ano passado em Marienbad, Alain Resnais, para recriar um suposto evento, propõe um percurso pelos labirintos da memória. O filme não tem nada de terrorífico, mas é desestabilizador. Enigmas fascinam e angustiam, ao mesmo tempo”, diz o pesquisador, que acaba de voltar de temporada na Columbia University, em Nova York.

A última parte da obra é dedicada a O homem sério, e o trabalho não pretende oferecer conclusões, no sentido mais comum do termo. Nuno lembra que é uma pesquisa da área de comunicação, menos interessada em criar tipologias ou uma gramática de gênero, mais preocupada com a questão da construção de parâmetros sociais de realidade. “Minha intenção é discutir que lugar o sonho e o delírio ocupam numa cena dominada pela racionalidade moderna. À definição de categorias, prefiro especular sobre como o absurdo abre possibilidades de conhecimento sobre filmes, romances e nossa própria capacidade de compreender o saber cotidiano.”

Mesmo que o discurso científico tenha evoluído, ressalta Nuno, o homem ocidental é devedor de chaves, como ordem e progresso, cunhadas séculos atrás. “Somos assombrados pelo fantasma do Iluminismo, por uma racionalidade que o tempo todo mostra seus limites. E o filme dos Coen, assim como vários outros, aponta para esse momento perturbador. É como se se questionasse: sem razão, o que fazer?”, afirma Nuno Manna.

Livro: A tessitura do fantástico: narrativa, saber moderno e as crises do homem sério
De Nuno Manna
Editora Intermeios / 190 páginas / R$ 35
Lançamento: 8 de maio, às 19h, na Casa Una Centro de Cultura (rua Aimorés, 1451, Lourdes)