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Nº 1864 - Ano 40
19.05.2014

Tudo documentado

Identificada em imagens, lesão de células do fígado espalha material genético pelos vasos do órgão; descoberta pode gerar fármaco capaz de dosar resposta do sistema imune ao fenômeno

Ana Rita Araújo

Quando células hepáticas começam a morrer, seja por doenças ou por estresse medicamentoso, seu material genético é jogado para fora e se espalha nos vasos do fígado. O fenômeno, identificado pela primeira vez, está descrito em artigo publicado na semana passada pela revista norte-americana Hepatology. “Ninguém imaginava que o genoma se acumulava fora das células”, comenta o orientador da pesquisa, professor Gustavo Menezes, do Departamento de Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB).

Além de consequências imediatas no tratamento de pacientes com lesões hepáticas, o trabalho oferece modelo para desvendar processos similares em outros órgãos, como rim, pulmão, coração e cérebro. Desenvolvida em curso de doutorado e pós-doutorado pelos autores Pedro Elias Marques e André Gustavo Oliveira, a pesquisa está prestes a gerar depósitos de patentes que se referem a processos e, possivelmente, a uma nova formulação farmacêutica capaz de evitar que o sistema imune tenha ativação descontrolada ao se deparar com esses produtos de células mortas.

Todo o estudo está documentado em imagens, captadas também de forma inédita, com técnicas de microscopia intravital utilizando microscópio confocal. “Nesse trabalho, descrevemos o que acontece quando uma parte do fígado morre. Isso nunca tinha sido visualizado”, garante Menezes. Segundo ele, foram produzidas imagens do processo em três níveis que se completam: dentro de animais vivos de maneira não invasiva; análises do fígado do animal por microscopia intravital; e da célula do fígado, esta última vista em cultura celular.

Cópias de DNA

De acordo com Menezes, enquanto a maioria das células do corpo tem uma cópia do genoma do indivíduo, um hepatócito (célula do fígado) pode ter até 16. “Ninguém sabe o motivo. É essa resposta que buscaremos na continuação do trabalho”, comenta o professor. Quando o hepatócito está sob estresse, o material genético que há dentro dele é liberado, e as células do sistema imune migram exatamente para o local onde o DNA se acumulou. Pesquisa anterior do mesmo grupo já havia demonstrado que produtos de células mortas agravam a lesão hepática, porque alertam o sistema imune, que passa a atuar de modo descontrolado. “Como esse material genético deveria estar dentro da célula, mas está fora, isso indica um problema, ativando a resposta imune”, reitera.

Na prática, se um paciente ingere medicação em excesso ou incorreta – incluindo determinados chás para emagrecer e anabolizantes –, o fígado recebe uma sobrecarga, e partes dele morrem. Os médicos procuram manter o paciente vivo até que o órgão se recupere, mas na tentativa de controlar o processo e proteger o organismo, o sistema imune sofre ativação exacerbada, levando a uma resposta inflamatória que aumenta a lesão. Nos casos mais graves, a única solução é o transplante. A descoberta de Pedro Elias Marques, relatada no artigo da Hepatology, serve de alerta para o modo como são tratados os pacientes com esse quadro.

“Demonstramos que, ao remover esse acúmulo de DNA ou impedir que o sistema imune o perceba, reduz-se mais da metade do problema hepático”, explica Menezes. Esses dois processos serão alvos de patentes prestes a serem depositadas. Imagens coletadas na pesquisa mostram um órgão cheio de DNA, material destruído minutos após a aplicação de determinada enzima; outras revelam a ação de medicamento que impede que o receptor de DNA TLR-9, do sistema imune, perceba o material genético, o que evita a ativação da resposta.

Menezes ressalta que tais procedimentos podem ser úteis também como terapias anteriores a procedimentos cirúrgicos que vão atingir o fígado, como o transplante, que se vale de um órgão funcional, mas que já possui muitas células mortas. Os pesquisadores sugerem tratar previamente, com uma dessas técnicas, o fígado que vai ser transplantado, o que pode ser determinante para o sucesso do procedimento e para melhorar a sobrevida do paciente. “Isso abre uma perspectiva muito importante para a hepatologia”, observa Gustavo Menezes.

Foca Lisboa
Equipe liderada pelo professor Gustavo Menezes (ao fundo, à esquerda)
Equipe liderada pelo professor Gustavo Menezes (ao fundo, à esquerda)

Com relação à amplitude da pesquisa, o professor comenta que seu grupo trabalha especialmente o fígado, “para ter um foco, mas os dados certamente serão expansíveis para outros estudos”. Ele explica que um problema hepático considerável pode causar falência de outros órgãos, já que os produtos de células mortas liberados durante a lesão hepática entram na circulação e ativam o sistema imune em outras partes do corpo. “O pulmão, por exemplo, tem vasos muito finos, onde se dá a troca gasosa. Eles estão cheios de leucócitos, que são ativados erroneamente quando recebem essa carga de produtos, e começam a destruir o pulmão”, afirma Menezes.

Referência

O pesquisador destaca que seu grupo de pesquisa – associado aos dos professores do ICB Maria de Fátima Leite e Mauro Teixeira – está se tornando referência mundial em hepatologia, pelo grande número de publicações em veículos de alto impacto. “Este é o nosso quinto trabalho na Hepatology nos últimos quatro anos, nível só atingido pelos maiores grupos do mundo”, ressalta. A equipe também está transferindo tecnologia de como trabalhar com fígado, como métodos de visualização, para outras universidades do Brasil e de outros países.

Entre as tecnologias transferidas pela equipe de Menezes estão a microscopia intravital por meio de microscópio confocal, a definição de formas inovadoras no uso de reagentes e até a construção de uma pequena mesa que adapta um microscópio convencional, de modo a visualizar animais vivos. “Desenhamos e mandamos fazer uma adaptação para colocarmos animais vivos em microscópios. A ‘mesinha’ já foi para os Estados Unidos e para alguns estados brasileiros”, conta o professor.

Segundo ele, o presidente mundial de uma empresa de microscopia esteve no laboratório para conferir a inovação. “Eles não acreditavam que isso era possível com um equipamento tão básico”, diz. O laboratório de Menezes também recebe constantemente amostras de corantes fluorescentes, o que reduz os gastos com a pesquisa. “Estamos devolvendo tecnologia para as empresas, que às vezes não sabem que os seus produtos podem ser úteis pra estudos in vivo. Aqui fazemos toda a padronização e relatamos a eles. Isso ajuda outros grupos a reproduzirem o que fazemos”, relata.

O professor também se orgulha do modo coletivo como as pesquisas são desenvolvidas no âmbito do seu grupo, envolvendo professores, alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, além da colaboração com cientistas do exterior. “Todos têm projetos igualmente importantes. Cada um tem um papel, sua pergunta, mas a linha de pesquisa envolve a todos, com a mesma responsabilidade. Aqui discutimos ciência em pé de igualdade”, assegura.

Artigo: Hepatic DNA deposition drives drug-induced liver injury and inflammation in mice
Autores: Pedro Elias Marques, André Gustavo Oliveira, Rafaela Vaz Pereira, Bruna Araújo David, Lindisley Ferreira Gomides, Adriana Machado Saraiva, Daniele Araújo Pires, Júlia Tosta Novaes, Daniel O Patricio, Daniel Cisalpino, Zélia Menezes-Garcia, W. Matthew Leevy, Sarah Ellen Chapman, Germán Arturo Mahecha, Rafael Elias Marques, Rodrigo Guabiraba, Vicente Paulo Martins, Danielle Gloria Souza, Daniel Santos Mansur, Mauro Martins Teixeira, Maria de Fátima Leite e Gustavo Batista Menezes
Disponível para leitura em http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/hep.27216/abstract