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Nº 1873 - Ano 40
25.08.2014

opiniao

A escada até a medalha*

Cássio Leite Vieira**

A Medalha Fields é, sem dúvida, uma glória para a matemática – e a ciência – no Brasil. E o nome de Artur Ávila e da instituição que o formou, o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, estarão para sempre inscritos na história deste país. Eis, portanto, a chance de lembrar algo de que muitos se esquecem ou acham que não vale a pena lembrar: a escada que elevou esse jovem carioca a tamanho prestígio internacional começou a ser edificada há muito tempo. E alguns de seus degraus foram esculpidos e cimentados por nomes como Joaquim Gomes de Souza (18291-1864), Otto de Alencar (1874-1912), Theodoro Ramos (1895-1935) e Manuel Amoroso Costa (1885-1928).

Haverá aqueles que dirão que nenhum deles deixou “contribuição significativa” para a matemática deste país. Quem o fizer estará meio certo e meio equivocado, pois isso depende do que se entende pela expressão acima grafada entre aspas. “Contribuição” seria dedicar-se à pesquisa em matemática em um ambiente intelectual inóspito à ciência e totalmente isolado da Europa, como fez Souzinha? Seria combater o Positivismo e atacar os erros da matemática do idealizador dessa doutrina filosófica, o francês Auguste Comte (1798-1857), em época na qual essa corrente de pensamento era endeusada pela maioria dos intelectuais brasileiros, como fez Alencar? Ou contribuição seria trazer a matemática feita no Brasil para o século 20, como fez, em sua tese de doutorado, Ramos, que, por sinal, também foi o introdutor da mecânica quântica no país? Ou introduzir por aqui a teoria da relatividade e sua complexa matemática (cálculo tensorial, geometria não euclidiana etc.), como fez Amoroso Costa no início da década de 1920?

Seria de se estranhar (muito) que algum deles demonstrasse um teorema dificílimo ou resolvesse um dos problemas então em aberto da matemática. Souzinha, Alencar, Ramos e Amoroso Costa podem ser vistos como meros “engenheiros e diletantes da matemática” – e, nesse caso, nada teriam a ver com a história que leva a Artur. Ou como pioneiros em um solo árido e infértil para a pesquisa científica – e que, de algum modo, contribuíram com algo tão ou mais importante do que resultados científicos: mudar a mentalidade do ambiente.

Haverá quem diga que a citação de tais nomes aqui é só uma forma de “fazer justiça” a eles. Pergunta-se: haveria algo mais nobre do que fazer justiça?

Há aqueles que gostam de iniciar a história da matemática no Brasil com a Universidade de São Paulo, para onde vieram, em meados da década de 1930, os matemáticos italianos Luigi Fantappié (1901-1956) e Giácomo Albanese (1890-1947). Há os que preferem jogar esse marco para a fundação do Impa, que nasceu, no início da década de 1950, em uma sala do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, para – aceitem ou não alguns – resolver um problema de um dos grandes matemáticos que o Brasil já teve, Leopoldo Nachbin (1922-1993), a quem a Universidade do Brasil foi preconceituosamente refratária ao impedi-lo de prestar concurso.

Em parte, a medalha de Artur é resultado de uma estratégia formulada e posta em prática há décadas pelo Impa: pensar grande – e deixar de lado, para citar palavras de Artur a um jornal, a “autoestima de vira-lata” da ciência no Brasil. E isso envolveu – sem conotação pejorativa – fazer lobby dos resultados alcançados. O Brasil sempre quis ganhar uma Medalha Fields. E trabalhou muito e duro para isso, formando gente de primeiríssima e obtendo resultados de igual nível. O resultado está aí: um marco ad aeternum para a ciência brasileira. E também um grande mérito para os chamados Institutos de Pesquisa, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que, não raramente, sofrem ataques dos que teimam em não entender a história e o papel da pós-graduação neste país.

Vale aqui lembrar outro brasileiro indicado para a medalha anos atrás, Marcelo Viana, também do Impa e ganhador da primeira edição (2005) de outra láurea igualmente de prestígio, o prêmio Ramanujan. Como Artur, Marcelo também trabalha com os chamados sistemas dinâmicos não lineares (aqueles que, mesmo minimamente perturbados, podem mudar bruscamente seu comportamento), área em que o Brasil é referência mundial.

Retrocedendo um pouco mais, tem-se um nome que está na raiz dos feitos de Artur e Marcelo: o norte-americano Stephen Smale, também Medalha Fields e que tem longa tradição de cooperação com a matemática brasileira. Smale é uma espécie de “avô matemático” de Artur e Marcelo.

E, para fazer justiça, vale citar que Artur e Marcelo foram alunos de dois outros grandes nomes da matemática brasileira, Jacob Palis e César Camacho, ambos do Impa, e que, em boa parte, são responsáveis por promover o nome da matemática brasileira no cenário mundial.

E aqui vale citar algo a que a mídia parece não ter dado a ênfase merecida: a Medalha Fields para uma mulher, a iraniana Maryam Mirzakhani. É também um marco, pois a história da matemática mundial pode ser vista como uma sequência de discriminações e preconceitos contra as mulheres. Para fazer justiça a duas pioneiras brasileiras, vale mencionar Marília Peixoto (1921-1961) e Elza Gomide (1925-2013).

Escolas e famílias ainda têm o péssimo hábito de dizer para suas alunas e filhas que matemática é coisa de menino. Maryam, certamente, servirá de modelo para muitas meninas no mundo que gostam de números e símbolos. E seu nome está agora ao lado de outras pioneiras  das exatas. Neste momento ímpar para a ciência brasileira – algo, talvez, só comparável à detecção do méson pi pelo físico César Lattes (1924-2005) em 1947-48 –, não podemos nos esquecer de que Artur é, sim, produto de uma luta – longa e, por vezes, inglória – pela instauração e manutenção da pesquisa no Brasil. Lattes nunca se esqueceu de seus professores e de citar o valor de pioneiros como Souzinha, Alencar, Ramos e Amoroso Costa, entre tantos outros. Espera-se que isso não seja um problema para Artur.

*Versão resumida de artigo publicado no blog Bússola, da Revista Ciência Hoje, em 13 de agosto. Sua íntegra está disponível em http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2014/08/a-escada-ate-a-medalha/view

**Editor de Internacional e de Forma e Linguagem da Revista Ciência Hoje