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Nº 1877 - Ano 40
22.09.2014

opiniao

Um 'cucaracho' no Brasil ciclotímico*

Hugo Rodolfo Lovisolo**

Quando cheguei ao Brasil, vindo da Argentina, lá por 1976, logo me disseram que eu era um cucaracho. Devo reconhecer que não entendi as razões do apelido, e ninguém conseguiu explicá-las. Achei apenas curioso, e não me ocorreu que poderia ser um insulto: nada indicava essa direção nos gestos. Ao contrário, achava receptivo e cordial o apelido dado pelos colegas brasileiros. Afinal, uma rua importante do Rio de Janeiro é a Barata Ribeiro e a palavra “bicho” pode ser usada carinhosamente. Coisas de brasileiros, pensei. Mais ainda quando se considera o poder da autoimagem brasileira sobre a cordialidade, a alegria, a hospitalidade e a receptividade – tão louvadas e, segundo a mídia, constatadas em pesquisas.

Talvez a amabilidade extrema do brasileiro se transforme em seu oposto: as altas taxas de homicídio. Especificar a cadeia dessa transformação, porém, não é fácil. O historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) parece dizer isso quando fala do homem cordial, emotivo, cujo arco daria conta tanto da amabilidade quanto da extrema violência da sociedade nacional. Outro deslocamento fartamente salientado é o que vai do elogio da grandeza brasileira para a enunciação de seu “complexo de inferioridade”, a famosa metáfora do “vira-latas” criada pelo escritor Nelson Rodrigues (1912-1980), esse popular frasista. Ele também dizia que toda unanimidade é burra e, com base nisso, gosto de brincar com um silogismo: se a unanimidade é burra e se, por unanimidade, o Brasil tem o melhor futebol, então o Brasil é burro. Ou com a aparente contradição entre “unanimidade burra” e “acreditar unanimemente em algo”.

Na Copa do Brasil, os deslocamentos foram postos de novo em circulação pública. Passamos muito rapidamente da ‘pátria de chuteiras’ à ‘pátria descalça’, ou com chuteiras cada vez menores. Salientar esses altos e baixos da autoimagem do Brasil é uma constante entre ensaístas e pesquisadores. Eles afirmam que o Brasil é um país ciclotímico. Mais ainda em relação ao futebol, área em que os resultados têm um peso quase absoluto, e os jornalistas reveem suas projeções com base nos resultados. Um exemplo está nas opiniões sobre a seleção brasileira antes, durante e depois da Copa do Mundo.

"Passamos muito rapidamente da 'pátria de chuteiras' à 'pátria descalça', ou com chuteiras cada vez menores. Salientar esses altos e baixos da autoimagem do Brasil é uma constante entre ensaístas e pesquisadores"

Volto ao qualificativo do início do texto. Certamente, os brasileiros estariam colocados fora da tribo dos cucarachos: estes são os outros. Os latino-americanos são os cucarachos e, clara e distintamente, os falantes de espanhol. Na infância, cantávamos “La cucaracha ya no puede caminar, porque no tiene, porque le faltan las dos patitas de atrás”. As mamitas carinhosas até podiam chamar seus filhotes de cucarachitas, talvez porque deviam ser protegidas para não serem pisadas.

Aliás, pisar uma barata sempre foi um joguinho que gerava o prazer dos sons crack e crusch, que parecem próximos do termo inglês cockroach. Com esses antecedentes, eu não me podia sentir ofendido quando me diziam “cucaracho, lhe pago um chope”. A música La cucaracha é um famoso corrido mexicano, cujo momento de auge ocorreu durante a Revolução Mexicana, nas primeiras décadas do século 20, embora suas origens sejam atribuídas, de modo obscuro, aos tempos da tomada da cidade de Granada, em 1492, que encerrou a guerra contra a presença árabe na Espanha. Como bom produto popular, teve variadas versões. Contudo, um fato se destaca: Cucaracha foi, e talvez ainda seja, o nome popular da marihuana (maconha) no México. Assim, em uma das antigas versões, a música dizia: “no podía caminar, porque no tenía marihuana pa’ fumar”.

Cultural e politicamente, então, La cucaracha está enraizada na história mexicana. E também na gastronomia: há restaurantes com esse nome em Estocolmo (Suécia) e em outros lugares. A comida mexicana não rejeita o inseto, que é utilizado como marca de uma tradição gastronômica, como se pode comprovar acessando a internet.

Nada disso devia ser sabido pelas mamás porteñas que ensinavam a canção e, ainda menos, pelas crianças que a cantavam em sua versão mais inocente (a das patitas). Não sabíamos que a primeira versão gravada foi da dupla mexicana Paz Flores e Francisco Montalvo, em 1934, seguida pela interpretação do norte-americano Louis Armstrong, em 1935. De lá para cá, as gravações são muitas. Uma visita ao YouTube permitirá desfrutar ou odiar algumas delas.

Dizem que os norte-americanos chamam os mexicanos de cucarachas ou cucarachos. Talvez simplesmente porque eles cantam a música que tem esse nome. Ou por conta de seus quentes sonhos com o estilo de vida mexicano que, curiosamente, lembram os sonhos dos hermanos argentinos com o Brasil, na busca de um exoesqueleto feito de Sol, tequila ou cachaça, marihuana, sonos e sonhos nos doces braços de uma mestiça, mulata, talvez chamada Leonor (como em outra música, O rancho da goiabada).

*Artigo originalmente publicado na Revista Ciência Hoje, em 16/09/2014, com o título A Copa de 2014 e os “cucarachos”

**Sociólogo argentino radicado no Brasil. Professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)