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Nº 1877 - Ano 40
22.09.2014

Anatomia (mais) humana

Faculdade de Medicina estimula doação de corpos em busca de eficácia no ensino e do contato do estudante com a morte

Itamar Rigueira Jr.

A sofisticação sonhada há algumas décadas por professores e alunos de anatomia já chegou às salas de aula, mas bonecos e imagens virtuais em três dimensões, por mais realistas que sejam, não substituem o corpo humano, garantem os especialistas. A criação de novas escolas de medicina e a abertura de maior número de vagas nos cursos aumentou a demanda, mas não chegam hoje às escolas, como antigamente, tantos corpos não reclamados por familiares – o que reflete melhorias nas condições de atendimento à saúde no Brasil. Um recurso comum na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, mas ainda não consolidado por aqui é a doação voluntária de corpos. Na Faculdade de Medicina da UFMG, o programa Vida após a vida, criado há 15 anos, é considerado bem-sucedido: conquistou cerca de 600 doadores e tem passado informações para outras instituições.

“Essa é uma experiência gratificante para os doadores, que ajudam a produzir conhecimento e beneficiam milhares de pessoas”, comenta o professor Humberto José Alves, coordenador do programa e recém-empossado vice-diretor da Faculdade. A importância da utilização em aula de um corpo “de verdade” não está limitada à questão técnica. “Muitos dos estudantes nunca estiveram tão perto de um corpo sem vida. A convivência com a ideia de morte provoca reflexão sobre os limites do médico, independentemente de sua competência. É sempre uma lição de humildade”, afirma Humberto Alves, que é professor do Departamento de Anatomia e Imagem.

‘De acordo’ da família

O coordenador recebe, quase sempre pessoalmente, seis pessoas por mês, em média. Durante as entrevistas, feitas em conjunto, ele aborda aspectos como a importância do gesto e a necessidade do “de acordo” da família e também explica que não deve haver velório, uma vez que o corpo precisa de cuidados quase imediatos para sua utilização de forma adequada nas aulas de anatomia.

“Essa recomendação não costuma gerar problema, já que a opção por não ser velado está muitas vezes entre os motivos da doação. Algumas pessoas não gostam de se imaginar no próprio velório, que consideram um ritual desgastante e até hipócrita”, diz Humberto Alves. Segundo ele, é comum também que doadores manifestem pavor de ser enterrados vivos ou resistência à ideia de ter seus corpos consumidos por micro-organismos.

Um fator que dificulta a conquista de doadores é a resistência das famílias. “Algumas poucas pessoas, mesmo com a decisão já tomada, desistem depois de comunicarem aos familiares.” Humberto Alves conta também que, após a morte do doador, um parente de primeiro grau tem, de acordo com a lei, a prerrogativa de impedir a doação, ainda que contrariando a vontade expressa formalmente pela pessoa. O programa Vida após a vida põe à disposição um funcionário para as providências de cartório e traslado do corpo, feito pela agência funerária da Santa Casa. “Quando o corpo chega à Faculdade de Medicina, é como se estivesse enterrado, não pode ser mais visitado”, explica Humberto Alves. Ele acrescenta que já está em curso a retomada de um projeto antigo: construir um mausoléu onde seriam depositados os restos mortais após a utilização. “Seria uma referência concreta para a memória das famílias e uma forma de reconhecer a doação.”

Dos 52 doadores que já morreram, 29 participaram da entrevista e manifestaram o desejo. Os outros 23 corpos foram doados por parentes, por iniciativa própria ou em respeito à vontade do familiar, ainda que ele não tenha feito o registro na Faculdade de Medicina.

‘Não doeu’

De acordo com o coordenador, entre os doadores há desde religiosos fervorosos até pessoas que não têm qualquer crença. Questões de religião nada tiveram a ver com a decisão de doar da pedagoga e psicóloga Sandra Motta Lima, professora aposentada da Faculdade de Educação, que sugeriu a abordagem do tema pelo BOLETIM. “É difícil lidar com a morte, por questões afetivas, sociais, culturais e econômicas. A finitude nos assusta, mas conjuguei o verbo morrer com o verbo doar e garanto que não doeu”, diz.

O altruísmo da doação do próprio corpo é exaltado pelo professor Geraldo Brasileiro, que ajudou a criar e coordenou por muitos anos o programa Vida após a vida. “Muitas pessoas ainda não sabem que é possível esse tipo de doação e, se soubessem, decidiriam pela doação. Essa é uma perspectiva bem positiva de continuidade. Para as escolas de medicina, a doação de corpos é uma alternativa legal, limpa, moral e ética de aperfeiçoar o ensino”, ele complementa.

Programa Vida após a vida
Telefone: 3409-9632
www.medicina.ufmg.br/vidaaposvida/