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Nº 1886 - Ano 41
24.11.2014

opiniao

Ciência versus jornalismo:
os contornos da crise

Juliana Botelho*

O anúncio de que a produção científica brasileira vem aumentando acima da média mundial nos últimos anos foi recebido com muito entusiasmo, não só pela comunidade científica local, como também pelos veículos de comunicação nacionais. Segundo dados divulgados pela empresa Thompson Reuters, durante a 1ª Cúpula Thompson de Experiência com Inovação, realizada em São Paulo, no fim de outubro, o Brasil passou da 24ª para a 13ª posição no ranking mundial, em um período de 20 anos.

O que pouca gente imagina é que o aumento da produção científica brasileira surge em meio a uma crise que afeta mundialmente a indústria do jornalismo, com desdobramentos bastante nefastos para a cobertura de ciência no país. Atrelada ao fenômeno da “convergência tecnológica”, a crise vem gerando cortes de pessoal nas redações, alterando as rotinas de produção das notícias e, consequentemente, o volume e a qualidade do conteúdo veiculado.

Mundial, a crise no jornalismo também ganha expressões nacionais e locais e impacta de forma diferenciada cada uma das editorias de um jornal. No Brasil, os cortes de pessoal nas redações têm acarretado pelo menos três consequências para a cobertura de ciência: 1) uso crescente de matérias de agências de notícias, homogeneizando a cobertura de ciência e reduzindo o esforço de apuração em âmbito local; 2) foco na produção dos pesquisadores e nas instituições científicas dos países do Hemisfério Norte; 3) inconsistências na apuração e na redação da notícia.

Levantamento realizado recentemente pela Coordenadoria de Comunicação Científica do Cedecom, com base em conjunto de 2.221 matérias jornalísticas coletadas diariamente em três jornais online de circulação nacional (O Globo, Folha de S. Paulo e Hoje em Dia), nos possibilitou chegar a alguns dados que podem surpreender pesquisadores e jornalistas. Nesse levantamento, tentamos comprovar a crise em alguns indicadores palpáveis: quantas matérias de ciência citam como fonte agências de notícias nacionais e internacionais? Quantas matérias trazem depoimentos de pesquisadores? De qual região do globo eles provêm? Quais as instituições de pesquisa mais citadas?

Resultados preliminares dão uma dimensão do fosso existente entre uma produção científica em ascensão e uma cobertura pautada pelas agências internacionais: quase metade das matérias desses três jornais (46%) provém de agências de notícias; 61% dos pesquisadores entrevistados são estrangeiros; mais de um quarto dessas matérias (29%) não trazem qualquer tipo de depoimento de pesquisadores, estrangeiros ou nacionais. O estudo destaca ainda a especificidade da cobertura de cada jornal e as distintas formas de colaboração com agências de notícias internacionais e nacionais, aspectos que não poderão ser discutidos adequadamente aqui, tendo em vista a exiguidade do espaço.

Contudo, é necessário salientar que as tensões entre jornalistas e pesquisadores são velhas conhecidas. De um lado, os primeiros se queixam da pouca disponibilidade dos pesquisadores em atendê-los e do hermetismo dos jargões científicos. De outro, cientistas lamentam a ausência de rigor da escrita jornalística e criticam as supostas distorções de suas declarações. Se a relação entre as partes já é permeada por atritos, o distanciamento entre elas acaba complicando o cenário da transparência pública, da prestação de contas à sociedade e da visibilidade da produção científica brasileira. Mas até que ponto o distanciamento é inevitável?

Uma parte do problema tem sido agravada com as recentes ondas de demissões nas redações dos principais jornais do país. A chamada “convergência tecnológica”, entendida pelos proprietários de veículos de comunicação como enxugamento de quadros, vem aliada à crise do impresso: são várias as facetas de um mesmo fenômeno, que afeta quantitativa e qualitativamente a cobertura jornalística do país. Em termos concretos, as demissões resultam em sobrecarga de trabalho, com o crescente acúmulo de tarefas por um mesmo profissional. Nesse cenário de crise, o que o mercado quer é um jornalista de perfil “generalista”, capaz de se desincumbir de tudo e de todos, em tempo recorde. Resumindo: menos gente, mais tecnologia, mais rotatividade nas redações, menos experiência acumulada em uma área específica.

Por outro lado, a fragmentação das editorias poderia ser usada a favor das universidades e dos centros de pesquisa. Felizmente, a convergência também abre portas para a multidisciplinaridade, tirando a ciência de seu confinamento em uma única editoria. Se a ciência transborda editorias específicas para entremear matérias de economia, política e meio ambiente, isso se deve a uma série de fatores: seja porque a realidade é suficientemente complexa para estar confinada em uma única especialidade jornalística, seja porque o número de pesquisadores no país está aumentando. Fato é que existe no Brasil público com nível de escolaridade crescente e que demanda informações mais qualificadas e cientificamente embasadas. Se os jornais não atentarem para essa ênfase exagerada na produção científica do Hemisfério Norte, eles perderão um grande filão, assim como o trem da história da pesquisa científica no Brasil.

*Coordenadora de Comunicação Científica do Centro de Comunicação (Cedecom) da UFMG