Busca no site da UFMG

Nº 1909 - Ano 41
22.06.2015

y
opiniao

A UFMG no Sisu e a arte de transformar virtude em defeito

Luciano Mendes de Faria Filho*

É muito comum que pessoas ou grupos sociais invistam energia para transformar seus defeitos em virtudes. Consciente ou não, essa operação faz parte das relações sociais, e são poucos aqueles que, em algum momento, não lançam mão desse artifício. Comportamento mais raro, porém, é o que busca transformar virtudes, próprias ou alheias, em defeitos. Parece-me que é o que está ocorrendo com a UFMG quando se avaliam os resultados da adesão da Universidade ao Sistema de Seleção Unificado, o Sisu.

A UFMG realizou, por meio da Pró-reitoria de Graduação, amplo levantamento de dados sobre os alunos de seus cursos de graduação e os publicou recentemente. Esses dados foram discutidos em debates organizados pela Pró-reitoria, envolvendo alunos, professores, servidores técnico-administrativos em educação e a imprensa.

Nas discussões mais abertas, sobretudo nas mensagens trocadas por professores e alunos sobre o assunto, uma das questões que mais chamou a atenção foi a suposta “elitização da UFMG”. O estudo detectou que, após o ingresso da UFMG no Sisu, o nível socioeconômico dos alunos cotistas, ou seja, advindos de escolas públicas, aumentou em relação ao período anterior, quando, fora do Sisu, a UFMG adotava o mecanismo de bônus. Também foi esse o aspecto que mais chamou a atenção da imprensa mineira, fato singularmente apresentado em matéria publicada no jornal Estado de Minas, do dia 6 de junho, intitulada Fim do vestibular e seleção via Sisu elitizam a UFMG.

A meu juízo, é preciso discutir essa operação de transformar uma virtude da UFMG – sua capacidade de atrair candidatos com as melhores notas no Enem – em um defeito – sua elitização, que, no discurso, nunca é considerada positiva. Em primeiro lugar, há de se levar em conta que esse movimento era perfeitamente previsível: em se tratando de um sistema universitário diferenciado e desigual, em qualidade e prestígio, como é o nosso, parecia óbvio, desde o início, que os candidatos com as melhores notas escolheriam, sempre que possível, as mais prestigiadas universidades. Alguém esperaria o contrário?

Em segundo lugar, também já havíamos alertado, há tempos, que a adesão da universidade ao Sisu, sem que fossem criadas condições para a recepção de alunos mais pobres, como a construção de moradias e a ampliação do sistema de assistência estudantil, resultaria, na prática, em impedimento para que alunos vindos de outros municípios de Minas e de outros estados, mesmo com boas notas no Enem, escolhessem estudar na UFMG. Para eles, a qualidade e o prestígio não seriam suficientes para assegurar sua decisão de optar pela UFMG, diante das dificuldades de manutenção em Belo Horizonte.

Em terceiro lugar, precisamos pensar no funcionamento mais ou menos integrado do sistema educacional. Os resultados da pesquisa demonstram que a escola pública de educação básica é muito desigual em sua qualidade – assim como as escolas particulares, por mais que nossa mídia teime em não ver isso – e que os diferentes estratos sociais usufruem desigualmente dessa qualidade.

Será muito ruim se o clamor contra a suposta elitização da UFMG resultar, por exemplo, em propostas de seu afastamento do Sisu – conquista que precisa ser aperfeiçoada e não abandonada – ou contribuir para obscurecer o debate sobre as ações necessárias para a correção do sistema e, particularmente, para o enfrentamento dos desafios impostos à Universidade quanto à oferta de formação de qualidade aos alunos e às alunas das camadas populares que a instituição recebe.

No plano mais geral, paralelamente ao investimento na melhoria da educação básica brasileira e, portanto, na diminuição das desigualdades entre as escolas, não é possível mais conviver com o engessamento do sistema federal de ensino superior, responsável por uma oferta tão baixa de vagas no ensino superior público (hoje em torno de 24% das vagas do sistema). É preciso discutir a expansão das modalidades diferenciadas de ensino superior público de forma que a sociedade brasileira possa usufruir mais e melhor dos altos investimentos feitos em suas universidades.

No plano interno, há muito a se fazer para oferecer uma formação de qualidade a nossos alunos e criar condições para que todos que chegam à UFMG possam ter acesso de forma mais igualitária a essa formação. Os dados e os pronunciamentos da Pró-reitoria são eloquentes na demonstração de que nosso maior problema não é a suposta elitização da universidade. Nossa preocupação deve ser com a radicalização das políticas de assistência estudantil, que devem, cada vez mais, se articular com a dimensão acadêmico-científica da vida universitária. É preciso, com urgência, que o funcionamento noturno da universidade seja condizente com as necessidades dos alunos matriculados nesse turno, normalmente os mais pobres, oferecendo a eles as mesmas condições de formação dadas aos estudantes do período diurno.

Em suma, a comunidade da UFMG deveria se sentir orgulhosa de receber os melhores alunos de nossas melhores escolas públicas, mas pode se mover mais para criar possibilidades para acolher todos que a escolheram pelo prestígio e qualidade – não somente o público de Belo Horizonte ou aquele formado por alunos com condições de arcar com os custos de sua manutenção na cidade. Deveria se mover também, e cada vez mais, para eliminar os obstáculos internos à oferta de uma ótima e igualitária formação para todos aqueles que chegam das mais distintas regiões do país. Se fortalecermos e/ou criarmos ações com esse fim, estaremos dando passos largos em direção a uma universidade cada vez mais inclusiva, de alta qualidade e atenta aos interesses da população brasileira.

*Professor titular da Faculdade de Educação e coordenador do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil – 1822/2022