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Nº 1909 - Ano 41
22.06.2015
Luana Macieira
Luiza Bongir |
Maria de Fátima Leite: compreensão dos mecanismos de divisão e multiplicação das células do fígado |
Na mitologia grega, o fogo era considerado um elemento exclusivo dos deuses, e quem se atrevesse a dominá-lo sofreria punições severas. Foi o que aconteceu com Prometeu, que roubou o fogo dos deuses e o deu aos homens, a fim de garantir a superioridade humana sobre os outros animais. Como castigo, Zeus o condenou: ele seria acorrentado no alto do monte Cáucaso, onde, todos os dias, um corvo dilaceraria um pedaço do seu fígado. O castigo seria eterno, uma vez que o fígado é o órgão com maior poder de regeneração do corpo humano. Todo pedaço que o corvo arrancasse estaria recuperado no dia seguinte.
O mito de Prometeu é uma das grandes inspirações da ciência, que continua tentando compreender os mecanismos responsáveis pelo grande poder de regeneração do fígado. Uma das linhas de investigação na UFMG é liderada pela professora Maria de Fátima Leite, coordenadora do projeto de pesquisa Liver regeneration – intracellular mechanisms involved in liver regeneration, em parceria com a Universidade de Lille, na França. O projeto, que acaba de ser aprovado em edital de cooperação entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e a Nord-Pas de Calais (NDPC), na França, receberá recursos de aproximadamente 200 mil euros.
“O processo de regeneração do órgão é impressionante. Se removemos 70% do fígado de um camundongo, ele consegue se regenerar por completo em até três dias. Enquanto não recupera as capacidades fisiológicas normais, o órgão não para de crescer”, explica a professora.
O objetivo do projeto é entender o mecanismo que ocorre dentro das células hepáticas envolvidas no processo de divisão e multiplicação. A pesquisa terá duas etapas: inicialmente, tentará comprovar os fatores de crescimento associados à proliferação da célula hepática. Depois, buscará entender por que a regeneração fica comprometida em razão de algumas doenças, como esteatose hepática e alcoolismo hepático.
“Queremos estudar o funcionamento do fígado saudável e também o doente, para entender qual parte da célula fica comprometida nesse último caso. Na esteatose hepática não alcoólica, doença que afeta um terço da população adulta que não consome álcool, compreender o que acontece no fígado é importante para fins preventivos”, afirma a pesquisadora.
A pesquisa não parte do zero. Há mais de uma década, uma equipe de pesquisadores liderada pela professora Maria de Fátima Leite descreveu nova organela celular, o retículo nucleoplasmático. Essa organela, que se localiza no núcleo da célula, é constituída por tubos que armazenam cálcio, mineral diretamente ligado a diversas atividades celulares.
“Ela é muito parecida com o retículo endoplasmático, que fica no citoplasma celular e também armazena cálcio, íon que exerce várias funções no corpo, como contração celular e secreção de hormônios. Vimos que o cálcio encontrado no citoplasma da célula tem função diferente do cálcio nuclear. Este age diretamente na proliferação da célula hepática, ou seja, na sua regeneração”, explica.
As descobertas sobre o retículo nucleoplasmático representaram o passo inicial da pesquisa, que começa neste ano. “Elas surgiram de testes com células hepáticas. Constatamos que um fígado com problema de regeneração tem danificada a sua maquinaria de cálcio celular [componentes que desencadeiam a liberação intracelular do íon e culminam com proliferação celular]. É essa hipótese que queremos comprovar”, afirma.
A pesquisadora espera que o estudo, que se inscreve no campo da pesquisa básica, amplie a compreensão dos processos envolvidos na regeneração das células hepáticas, resultando mais tarde em terapias capazes de melhorar a qualidade de vida de pessoas que apresentam quadros patológicos hepáticos, e de aumentar os índices de órgãos disponíveis para transplante.
“Ao descrever o que está errado na liberação de cálcio nas células de uma pessoa com doença hepática, podemos tratar esse paciente para que tenha mais qualidade de vida. Além disso, como o fígado portador de esteatose hepática ou de alcoolismo hepático não pode ser doado, mais fígados estarão disponíveis para transplantes no futuro, caso a ciência encontre a cura dessas doenças”, analisa.
A pesquisadora acrescenta que pesquisas focadas em células hepáticas são importantes porque o aumento da incidência de doenças no fígado é reflexo dos costumes da sociedade moderna. “As pessoas cultivam hábitos que afetam esse órgão. Elas comem mal, bebem muito e tomam anabolizantes e medicamentos cada vez mais fortes. São hábitos que lesionam o fígado. Precisamos melhorar sua capacidade de regeneração caso esteja comprometido por alguma patologia”, conclui Maria de Fátima Leite.
[Matéria publicada no Portal UFMG, seção Pesquisa e Inovação, em 17/06/2015]