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Nº 1910 - Ano 41
29.06.2015
Adalgimar Gomes*
A encenação protagonizada por Viviany Beleboni, na última Parada Gay, realizada no início de junho, em São Paulo, faz-me rememorar três episódios semelhantes que tiveram Cristo representado.
Em 1989, João Clemente Jorge Trinta, carnavalesco da Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, do Rio de Janeiro, coordenou o desfile Ratos e urubus, larguem minha fantasia, em que Jesus Cristo foi representado na forma de um mendigo crucificado. A Igreja Católica protestou e conseguiu, por meio de ação judicial, a proibição da performance. A alegoria censurada passou pela Marquês de Sapucaí totalmente coberta por um plástico, mas com o protesto: Mesmo censurado, rogai por nós. A intenção do carnavalesco era associar a figura de Cristo à de uma pessoa em extrema pobreza, o que, de certa forma, coaduna-se com passagens do texto bíblico, em que Jesus se identificou com os humildes.
No ano de 1991, José de Sousa Saramago, escritor português, lançou o Evangelho segundo Jesus Cristo, obra literária em que Saramago apresentou uma leitura nova, diferente, crítica e controversa – Cristo formava par com Maria Madalena e se recusava a ser crucificado. A escrita de Saramago, evidentemente, não pretendia destruir a força representativa da Bíblia, mesmo porque ninguém tem condições de fazê-lo. Apesar de receber críticas contundentes de integrantes da Igreja Católica, e a elas responder com veemência, causando desconforto em políticos religiosos, Saramago acabou agraciado, em 1998, com o Prêmio Nobel de Literatura, o primeiro concedido a um escritor de língua portuguesa.
Em 2006, Madonna Louise Veronica Ciccone apresentou performance da canção Live to tell (Viver para contar), na turnê Confessions. Naquele tempo, a ousadia da artista foi cantar sobre um grande crucifixo espelhado, que se movia de baixo para cima. Na cabeça, Madonna carregava uma coroa de espinhos – que, evidentemente, era artificial. Integrantes da Igreja Católica rechaçaram aquele espetáculo. Significativo observar que a proposta da cantora era chamar a atenção para a pandemia de aids que ainda vitima a África. Ela denunciava, daquela forma, a situação de 12 milhões de crianças desassistidas. Tanto que, no videoclipe, a cantora apropriou-se de passagens bíblicas, de falas de Cristo acerca da acolhida dos bons. Madonna não é Cristo.
Agora, deparamos com a reação virulenta à performance da atriz Viviany Beleboni que, ao encenar Jesus Cristo crucificado, pretendia também denunciar o sofrimento de gays, lésbicas, bissexuais, trangêneros, travestis e transexuais violentados diariamente em nosso país. Havia, no topo da cruz, a expressão Basta de homofobia LGBT. O que significa homofobia? Medo. Medo do outro que muitas vezes não segue a orientação sexual padrão. Viviany não é Cristo.
Viviany não é Jesus Cristo, nem gay, nem homem, nem mulher. Viviany é transexual. Transexual, esse estranho ser que transita em percursos diferentes e que sofre, não devido à sua condição, mas por causa da nossa ignorância e da nossa recusa a estudá-los, conhecê-los e respeitá-los como sujeitos de direito. Os transexuais estão em situação de maior vulnerabilidade na comparação com outras categorias de gênero.
Imprescindível enfatizar que o campo semântico ora em debate é o da sexualidade que sempre foi tratada como tabu por uma grande maioria da sociedade, pautada por princípios moralizantes. Dessa forma, há de se compreender, mas não concordar com a reação contundente dos religiosos mais exaltados. É oportuno verificar as diferentes investidas do passado contra o carnavalesco, o escritor e a cantora. E agora as vozes que condenam a atriz. Talvez possa haver coerência na defesa da moral e dos bons costumes apregoados pelas instituições religiosas, mas não, não pode haver, numa sociedade como a nossa, tentativas de impedir a liberdade de expressão do outro.
A oposição às paradas gays e suas performances, por parte de quem quer que seja, deve ser vista como natural. O que temos de condenar é a violência que perpassa as constantes ameaças que a transexual afirma ter recebido após a Parada Gay. De igual forma, temos de repugnar o silêncio e a covardia daqueles que dizem defender a vida e não se pronunciam diante de episódios de opressão contra seres humanos.
Afinal, Cristo pode ser representado? Penso que sim, considerando que ele é um símbolo, uma personalidade pública e não propriedade absoluta de nenhuma religião. Claro que aqueles que o representarem podem ser criticados, mas sem a virulência que tolhe seu direito de expressar. Uma violência que não combina com o Estado Democrático de Direito que nos tem custado muito, independentemente de sexualidade e de religião.
*Técnico em Assuntos Educacionais e estudante de pós-graduação em Estudos Literários na UFMG