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Nº 1920 - Ano 42
16.11.2015

opiniao

A esperança equilibrista

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

No clássico Raízes do Brasil (1936), Sérgio Buarque de Holanda já havia alertado: "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido". Na democracia, convivem análises, percepções e posições diferentes, o que tonifica a política e engrandece a sociedade. Manifestações e protestos são partes integrantes do regime democrático. O contraditório é sempre necessário e bem-vindo, estimula o debate e constitui um avanço para o país. O Brasil, no entanto, caminha em terreno perigoso, quando algo ameaça essa pluralidade. Trata-se do fantasma do autoritarismo, raiz de golpes, que, infelizmente, se manifesta de forma corriqueira, sempre pronto a agir no dia a dia das pessoas.

Em relação à cultura democrática, nós, cidadãos, temos que regar essa planta frágil todos os dias – o que nem sempre tem acontecido. Se nos deixarmos apedrejar, física ou moralmente, daqui a pouco estaremos novamente diante de um Estado fascista. Não podemos permitir que o espírito autoritário seja o nosso carro-chefe novamente. Para tanto, é preciso reconhecer e praticar, constantemente, a democracia e a cidadania, levando em consideração o legado maduro presente nessas instâncias. Quem muito contribuiu para que o Brasil aprendesse a se manifestar de acordo com as regras democráticas, mesmo com as fortes ameaças impostas pela tradição autoritária, foi Herbert José de Sousa (1935-1997), o saudoso Betinho.

Mineiro de Bocaiúva, Betinho formou-se em sociologia pela UFMG, em 1962. Foi autor de um dos capítulos mais bonitos do ativismo brasileiro em matéria de direitos humanos. A oposição à ditadura instalada no Brasil pelo golpe militar de 1964 obrigou o sociólogo a partir para o exílio, só retornando ao país com a anistia política, em 1979. Sua exemplar trajetória em prol da democracia cidadã fez de Betinho um dos símbolos da resistência política, fato registrado musicalmente pelo lirismo de João Bosco e Aldir Blanc, na canção O bêbado e a equilibrista (1979):

"Caía a tarde feito um viaduto/E um bêbado trajando luto/Me lembrou Carlitos/A lua, tal qual a dona de um bordel/Pedia a cada estrela fria/Um brilho de aluguel/E nuvens, lá no mata-borrão do céu/Chupavam manchas torturadas/Que sufoco/Louco, o bêbado com chapéu-coco/Fazia irreverências mil/Pra noite do Brasil, meu Brasil/Que sonha com a volta do irmão do Henfil/Com tanta gente que partiu/Num rabo de foguete/Chora a nossa pátria, mãe gentil/Choram Marias e Clarices/No solo do Brasil/Mas sei que uma dor assim pungente/Não há de ser inutilmente/A esperança/Dança na corda bamba de sombrinha/E em cada passo dessa linha/Pode se machucar/Azar, a esperança equilibrista/Sabe que o show de todo artista/Tem que continuar...".

O irmão do cartunista Henfil, citado na música, é justamente Betinho, ícone supremo da "esperança equilibrista", mesmo diante dos momentos mais autoritários da nossa história, "lá no mata-borrão do céu", onde "chupavam manchas torturadas". No campo das políticas públicas, o sociólogo foi um dos primeiros intelectuais a advogar em favor da sociedade civil, incentivando o trabalho das organizações não governamentais como agentes promotores da rede de proteção social, indo além dos desenhos traçados pelo Estado e pela iniciativa privada. O sociólogo também se fez decisivo na viabilização de importantes campanhas nacionais, a exemplo dos movimentos Terra e Democracia (1990), Ética na Política (1992) e Ação de Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida (1993). Defesa da reforma agrária, combate à corrupção, erradicação da fome e da pobreza foram bandeiras sociais defendidas, com vigor, por Betinho. Essas reivindicações ainda soam como atuais na busca por melhores dias para o povo brasileiro, cuja governabilidade precisa sempre contemplar sua autonomia política e decisória nos âmbitos do poder e do saber.

No tocante à saúde pública, Betinho foi responsável por uma grande campanha nos meios de comunicação para esclarecer as pessoas a respeito da aids. O sociólogo recebeu, em 1986, o diagnóstico de sua contaminação pelo HIV, em decorrência de uma transfusão de sangue, rotina de tratamento sempre presente na vida de Betinho que, desde a tenra idade, convivia com a hemofilia, doença no sangue que impede a coagulação. Se, hoje, a sociedade brasileira é mais equipada no enfrentamento da epidemia de HIV e da aids, isso se deve muito ao trabalho pioneiro de Betinho, à frente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), instituição que ajudou a fundar, em 1987.

Inspiradas na militância política de Betinho, as teses sobre democracia cidadã apresentam quatro pilares fundamentais de sustentação. O primeiro propósito reside na participação: o ser humano, inteligente e livre, não quer ser apenas beneficiário de um processo, mas ator e participante. Só assim se faz sujeito e cidadão. Essa participação deve vir de baixo para não excluir ninguém. O segundo elemento consiste na igualdade. Trata-se da igualdade no reconhecimento da dignidade de cada pessoa e no respeito a seus direitos que sustentam a justiça social. O terceiro princípio representa a diferença, que deve ser acolhida como manifestação das potencialidades próprias das pessoas, dos grupos e das culturas. São as diferenças que nos revelam que podemos ser humanos de muitas formas, por isso merecedores de respeito e de acolhida. E o quarto sustentáculo se dá na comunhão: o ser humano é subjetivo, tem capacidade de comunicação com sua interioridade e com a subjetividade dos outros; é um portador de valores, como solidariedade, compaixão, defesa dos mais vulneráveis e diálogo com a natureza e com a transcendência. Betinho é a prova viva de que a essência humana pode ser o conjunto das relações sociais em favor do coletivo edificante.

* Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG