08 de fevereiro de 2022
No terceiro andar do Espaço do Conhecimento UFMG, na instalação Mercatu Mundi da exposição Demasiado Humano, há um mapa histórico. Esse mapa, além de representações geográficas (continentes, cidades, rios…), possui algumas ilustrações que chamam muita atenção. Ao avistarmos essa representação cartográfica, surgem algumas questões: Quem é o autor? Onde foi produzida? Em que ano? Qual era o contexto de sua produção? Com que técnicas ela foi feita? Quais foram as referências utilizadas pelo autor? Vamos responder algumas dessas perguntas ao longo do texto!
Mercatu Mundi – Exposição Demasiado Humano. Fonte: Espaço do Conhecimento UFMG
Os estudos e as operações científicas, técnicas e artísticas que envolvem a feitura de mapas se denominam cartografia. Essa ciência se transformou ao longo dos anos, e o estudo da cartografia de uma época pode nos revelar muito sobre o contexto histórico e social em que foi produzida.
O mapa representado na exposição Demasiado Humano é o America, do holandês Jodocus Hondius. O cartógrafo, gravurista e editor de mapas nasceu em Flanders, em 1563. O mapa America foi lançado em 1606, e constitui-se uma mistura de diferentes fontes cartográficas e iconográficas (repertório de imagens de uma obra, de um artista ou de um período artístico).
Como a maioria de sua época, o mapa é composto por um retângulo central e laterais destacadas em laranja. Nelas estão contidas as marcações de latitudes e as palavras “Ocidente”, “Oriente”, “Meridional” e “Septentrio”, que indicavam as direções do globo. Há, ainda, um retângulo no canto esquerdo inferior, com uma ilustração e a assinatura do cartógrafo. A obra apresenta projeções, representadas pelas linhas verticais e horizontais. O globo divide-se entre as marcações do trópico de Câncer, a “aequinoctialis linea”, correspondente à linha do Equador, que divide o hemisfério norte e sul geográficos, e o trópico de Capricórnio.
Impresso a partir de uma chapa de cobre com 500 milímetros de comprimento e 375 milímetros de altura, a carta apresenta, em destaque, dois continentes: a América Setentrional (norte) e a América Meridional (sul). Do lado esquerdo, quase colada às terras americanas, observamos uma porção da Ásia e da Nova Guiné, e do lado direito, porções da Europa e da África. Adjacente à “Terra do Fogo”, no canto inferior do mapa, está a chamada “Terra Australis”. O que conhecemos atualmente como os oceanos estão identificados como o “Mar do Sul”, o “Mar Pacífico”, e o “Mar do Norte”. Chamam a atenção, ainda, as diversas ilustrações de animais, embarcações e figuras monstruosas que adornam a obra.
O mapa foi produzido no final do Renascimento, período da história da Europa situado entre meados do século XIV e inícios do século XVII, sendo muitas vezes considerado o marco temporal de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. O Renascimento também é entendido como um movimento artístico, cultural e científico, que possuía como pilares as noções de valorização da razão, do antropocentrismo (o homem como centro do Universo) e a inspiração na Antiguidade Clássica. Foi nesse momento que se estabeleceu uma maneira científica de produzir mapas, ou seja, consolidou-se a partir daí uma produção com bases em comum, que se apoia em método, técnicas e uma teoria compartilhada. A adoção do sistema de projeção (representação esférica do globo terrestre) e coordenadas (pontos de cruzamento imaginários) serão as grandes inovações da época. Somados a isso, os conhecimentos geográficos advindos das Grandes Navegações e das expedições de naturalistas enriquecem imensamente o universo cartográfico: surgem novas ilhas, mares, continentes, povos e animais. Apesar desses avanços, muitos territórios aparecem distorcidos, como podemos notar em Hondius, pela falta de conhecimento ou em função do imaginário da época.
Outra grande novidade dos mapas do Renascimento são as gravuras iconográficas! A análise dessas ilustrações é muito importante para a compreensão das obras. Muitas vezes, ela precisa ser feita baseada em estudos de historiadores que visam compreender a produção de imagens de uma época, para que essas não sejam mal compreendidas.
O mapa America apresenta 17 ilustrações, sempre localizadas à margem dos continentes, algumas acompanhadas de observações em latim. Elas podem ser divididas em três grupos principais: animais marinhos ou monstros fabulosos, navios europeus e cenas de costumes. A maioria dessas figuras pode ser observada em diversos trabalhos cartográficos e catálogos naturalistas dos séculos XVI e XVII. Por exemplo, o festejo tupinambá, uma das cenas representada no canto inferior esquerdo.
Festejo Tupinambá – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Na legenda da representação, está escrito: “modo de preparar e tomar a bebida entre os [nativos] americanos no Brasil, […] Essas bebidas especiais são consideradas deliciosas entre eles” (TEIXEIRA, 2008, p. 110). Segundo historiadores, essa imagem está baseada nas ilustrações das Grand Voyages, de Theodore de Bry, conhecido gravurista de cenas indígenas brasileiras.
Nas imagens de animais marinhos representados em America, temos um peixe voador. À época, os peixes voadores despertavam o fascínio e o medo dos homens que o viam, criando uma grande mística em torno desses peixes. Outra ilustração, a princípio de caráter monstruoso, se trata, na verdade, de um tubarão martelo, figura também comum entre os naturalistas da época.
Peixe voador – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Tubarão martelo – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
É importante notar que a maior parte dos seres que pensamos fantásticos são, na verdade seres reais, que, envoltos em um imaginário de mistério e de medo, têm sua representação distorcida, como é o caso das baleias. Esses gigantescos mamíferos marinhos eram cercados por uma variedade de lendas, e ocuparam um lugar especial no imaginário cristão, tendo recorrentemente recebido representações monstruosas nos mapas e textos dos séculos XVI. O único monstro presente no mapa de Hondius, abaixo da linha do equador, se chama “Aloe”, e já havia sido descrito pelo explorador André Thevet. Esse animal esquisito se pareceria com um ganso, com o pescoço comprido, o corpo sem escamas e quatro nadadeiras, e também já havia despertado o interesse dos cartógrafos do speculo XVI.
Ilustração de baleia presente no mapa – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Monstro Aloe – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Por fim, estão ilustradas no mapa America algumas embarcações que indicam os povos com quem os europeus já haviam tido contato na época, como por exemplo o junco japonês e o caiaque esquimó. Além disso, há também no mapa um navio holandês. Sabe-se que, na época da confecção desse mapa, a Europa passava pelas Guerras de Religião, principalmente entre países protestantes (como a Holanda) e católicos. Provavelmente Hondius escolheu pintar em seu mapa embarcações de países protestantes para representar a presença dessas nações na disputa pelas riquezas do além-mar.
Embarcação Holandesa – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Junco Japonês – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Caiaque Esquimó – Fonte: Mapa America de Jodocus Hondius
Neste texto, conhecemos um pouco mais sobre o mapa America e sobre elementos da cartografia histórica. Observamos como os mapas podem nos revelar informações muito interessantes sobre um tempo histórico.
Você já visitou a exposição Demasiado Humano e se deparou com o mapa do texto? Não ?! Então, não perca tempo e venha conhecer o museu. Agora, se você já visitou, venha relembrar e rever a instalação e conhecer as novidades do Espaço. Informações sobre o funcionamento do museu podem ser consultadas aqui.
[Texto de autoria de Ana Vila Pacheco, aluna do curso de história e estagiária do Núcleo de Ações Educativas do Espaço do Conhecimento UFMG]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CINTRA, Jorge Pimentel. Técnicas de leitura de mapas históricos: uma proposta. Revista Brasileira de Cartografia, v. 67, n. 4, p. 773-786, 2015. Disponível aqui!
MACHADO, Maria Márcia Magela; RUCHKYS, Úrsula. A América do Sul na cartografia renascentista. Navigator, v. 7, n. 13, p. 57-67, 2011. Disponível aqui!
TEIXEIRA, Dante Martins. A “America” de Jodocus Hondius (1563-1612): um estudo das fontes iconográficas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 46, p. 81-122, 2008. Disponível aqui!
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Expografia e Fotografia na exposição “Olhares Metropolitanos”