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Palestrantes discutem ancestralidade africana e caráter espiralar do tempo

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016, às 15h50

Na manhã desta quarta-feira, 3, a experiência estético-sonora da festa do Reinado de Nossa Senhora do Rosário motivou a comunicação que abriu o último dia de atividades do Ciclo de Palestras do Festival de Verão 2016. Em sua exposição, a professora Glaura Lucas, do Departamento de Teoria Geral da Música da UFMG, retomou as reflexões que reuniu em sua tese de doutorado, Música e tempo nos rituais do congado mineiro dos Arturos e do Jatobá, defendida na UFRJ em 2005.

Glaura explicou que o congado trata da trajetória dos negros em Minas Gerais, seus rituais e formas de transmitir conhecimento entre gerações. “É uma manifestação que diz respeito à forma como os negros absorvem o catolicismo e o transformam a partir da sua visão de mundo, mas também uma demonstração de resistência cultural, política”, diz. “É uma manifestação que remete à ancestralidade, às vivências nas senzalas.”

A festa deixa transparecer uma forma própria que os negros têm de honrar os santos católicos. “Eles introduzem elementos de seu modo de pensar e perceber a vida nesse processo, a sua relação com a ancestralidade, que, para eles, é muito importante”, diz.

Glaura Lucas [na foto acima] explicou que, no congado, a música (ou melhor, o “canto”, termo que a professora afirma ser mais pertinente e mais usado no contexto do congado, por englobar toda a complexidade da experiência estético-sonora da festa) se estabelece como forma de comunicação e interação comunitária. “No Rosário, o tambor é o meio de comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Ele atua como interface com outra realidade de espaço-tempo, estabelecendo um processo temporal cíclico, a relação com os antepassados.”

A professora relatou certas especificidades da celebração. “No congado, a música não se dá em um contexto: ela própria é o contexto para que as relações sociais aconteçam e se estabeleçam”, disse. “E as músicas não têm claros marcos definidores de início e fim, tal como se dá na música cotidiana. Há uma ideia de repetição, de música espiralada.”

Imagens e coreografias A ideia de tempo espiralar foi aprofundada na palestra seguinte, ministrada por Leda Martins, professora da Faculdade de Letras e diretora de Ação Cultural da UFMG. Em sua abordagem, Leda apresentou uma experiência de construção de memória por meio das “coreografias e imagens do tempo espiralar”, no âmbito das corporeidades e performances negras, campo em que o próprio congado se situa.

Contudo, Leda Martins não se restringiu à ideia de tempo espiralar no contexto do congado. Ela também falou sobre o tema no âmbito da cultura indígena maxakali e nas demais culturas ao longo da história, inclusive ocidentais.

“Na verdade, as narrativas fundacionais de todas as grandes civilizações, assim como das culturas que formatam essas civilizações, iniciam-se por meio da ideia de tempo. Na judaico-cristã, por exemplo, o gênese inaugura a cronometria; o antes e o depois, a concepção de temporalidade. Na grega, temos o deus Chronos. Em todas as grandes civilizações, o tempo nos habita e nos constitui como sujeitos”, afirmou.

Segundo Leda Martins, a ideia de tempo sempre se materializou por meio de narrativas. “A experiência do tempo em todas as sociedades se inscreve com o surgimento da palavra, ainda que, em cada caso, por diferentes experiências de temporalidade", ressalvou, acrescentando que a ideia de ancestralidade, nesse contexto, é introduzida nas Américas pelos africanos. “Trata-se de pensamento filosófico restituído nas Américas por um suporte específico, o corpo. É pelo corpo que conceitos das mais variadas ordens, inclusive a filosófica, são reinscritos na América pelos negros”, disse.

A professora exemplificou essa relação com a ancestralidade, não apenas na América, mas em outros ambientes não ocidentais espalhados mundo afora. “Nas Américas, na época da escravidão, os povos escravizados tentavam se comunicar com os ancestrais enterrados na África. Em épocas de guerra, famílias de várias partes do mundo vendiam todas as posses que tinham para recuperar os corpos de parentes mortos.”

Nesse sentido, observou Leda, o tempo não segue uma linha reta. Ele é espiralar, com passado e futuro recorrendo no presente. “É uma ideia de sincronicidade de passado, presente e futuro, que inclui tanto os que já morreram quanto os que ainda vão nascer. Por isso, no congado manifesta-se a ideia de que a música não tem fim. Nada tem começo, nada tem fim. O tempo é espiralar.”

As palestras do Festival de Verão 2016 foram todas ministradas no Conservatório, no centro da capital mineira. Outras atividades prosseguem na tarde desta quarta e na quinta-feira, dia 4. O encerramento será amanhã, no Conservatório, às 18h30, com apresentação pré-carnavalesca do bloco Magnólia Brass Band.

Fonte: Agência de Notícias UFMG