(Foto em destaque: a mediadora da mesa, professora Fernanda Sobral, e o sociólogo Ricardo Mariano. Foto: Pietro Sitchin/SBPC)

O conflito de visões de mundo que se intensificou nos últimos anos na política brasileira não vai se esgotar rapidamente, assim como os radicalismos de parte a parte. As batalhas pela família, pela escola, pela sexualidade ainda vão perdurar, segundo o professor Ricardo Mariano, da Universidade de São Paulo (USP), que falou sobre religião e política no Brasil, neste primeiro dia de apresentações e debates da 69ª Reunião Anual da SBPC.

Vice-coordenador da pós-graduação em Sociologia da USP, Mariano optou, em sua conferência, pelo recorte que privilegia atuação de grupos evangélicos que se identificam como conservadores e de direita.

Ele lembrou que, ao longo dos séculos 19 e 20, os cientistas sociais trabalharam sob a perspectiva de que a modernização minaria a necessidade de explicação religiosa e levaria à secularização de todos os aspectos da vida humana. “Acreditava-se que as religiões ficariam circunscritas à vida privada, não teriam importância na vida política”, disse Mariano. “Mas, nos últimos 30 ou 40 anos, o ativismo religioso tornou-se um fenômeno global. E constatou-se que o processo de secularização foi, na verdade, resultado de lutas políticas e ideológicas intensas.”

Segundo o pesquisador, o Brasil tem cerca de 60 milhões de evangélicos, 70% dos quais da linha pentecostal. Mas, da liturgia à política, eles não formam um bloco coeso. Ricardo Mariano comentou que os pentecostais são bastante expostos às autoridades religiosas, mas pesquisas têm mostrado que isso não reflete tão fortemente na hora de votar. De qualquer forma, as regras eleitorais brasileiras (sistema proporcional, lista aberta) facilitam a eleição de lideranças religiosas.

“Até os anos 80, os evangélicos eram claramente anticomunistas e apoiaram a ditadura militar, mas não se envolviam na política parlamentar. Na Constituinte que gerou a Carta de 1988, no entanto, já se formou uma bancada no Congresso Nacional, em defesa da família e em oposição ao aborto. Eles se aliaram ao Centrão e aos ruralistas”, disse Mariano, que teve sua conferência apresentada por Fernanda Sobral, professora da Universidade de Brasília e conselheira da SBPC.

Segundo o pesquisador, na Constituinte, os deputados evangélicos já se identificavam como conservadores e contra a esquerda, e seu foco se ampliou, mas não se alterou nos últimos 30 anos. O número de deputados federais aumentou de 32 para 90.

Se, nas eleições de 1989, o PT sofreu forte oposição dos políticos evangélicos, no segundo turno do pleito de 2002, Lula já teve o apoio de líderes como Edir Macedo. “Uma aliança perdurou até as vésperas do impeachment de Dilma”, afirmou Ricardo Mariano. “Isso mostra que grupos religiosos não estão fadados a aderir à direita, são também guiados pelo pragmatismo.”

Escola como campo de batalha
O professor da USP, que edita a revista Plural, dedicada às ciências sociais, lembrou o grande destaque que tiveram, nos últimos tempos, os deputados federais Marco Feliciano e Eduardo Cunha, que não mediram esforços para abrir espaço para ideias caras às igrejas, como o veto à possibilidade de adoção de crianças por casais homoafetivos.

“Parlamentares como Feliciano e Cunha são responsáveis por ações como o bloqueio à iniciativa do Ministério da Educação de fazer campanha contra a discriminação de teor sexual nas escolas. O material da campanha acabou ficando conhecido como ‘kit gay’”, exemplificou Ricardo Mariano.

De acordo com o pesquisador, a pauta evangélica no Parlamento é reação defensiva a transformações socioculturais e políticas, representadas por feministas e pela comunidade LGBT. “Ficam demonstrados mal-estar e indignação contra o avanço do pluralismo cultural e a diversidade de modos de vida e de arranjos familiares”, enfatizou. Mariano fez questão de frisar, contudo, que não há divisão clara entre os atores religiosos e seculares: há conservadores entre os seculares e também os religiosos que se identificam com teses progressistas.

Ricardo Mariano destacou que os impasses no Parlamento emperram projetos de lei dos dois lados e ensejam a judicialização das demandas, na medida em que algumas minorias veem na Justiça uma postura mais progressista que a do Legislativo. “O curioso é que o discurso usado nas ações judiciais pelos grupos religiosos – por exemplo, no esforço de patologização da homossexualidade – tem base secular e não teológica”, salienta.

Com ruralistas e Bolsonaro
Ao caracterizar a atual composição do Congresso Nacional, o professor da USP ressaltou que a bancada evangélica, que se expandiu após as últimas eleições, aproxima-se de grupos como os ruralistas e os favoráveis ao armamento da população. A bancada tem estado mais próxima também de nomes como Jair Bolsonaro, que defende o Estado cristão e “o Brasil para as maiorias”.

“Por essas e outras razões, o ativismo político evangélico tem sido contestado pelos defensores dos direitos humanos, que o acusa de fundamentalista e de representar risco para a democracia e para a valorização da competência técnica e científica”, afirmou Mariano.

“Os grupos políticos evangélicos tratam a política como um ministério religioso, uma forma de evangelizar e impedir a influência ‘demoníaca’ sobre as instituições e os comandantes da nação”, concluiu o pesquisador.

A conferência Religião e Política no Brasil  também foi assunto de reportagem veiculada nesta segunda-feira, no Jornal UFMG, da Rádio UFMG Educativa (104,5 FM). Ouça: