Reflexões dominicais sobre ética e ciência *

Marcelo Gleiser **

ciência precisa de liberdade para progredir. É difícil imaginar que
idéias possam fluir em uma realidade cheia de obstáculos morais e censuras legislativas. A ciência, aqui, não difere de cultura em geral: é difícil, também, imaginar que a produtividade cultural possa sobreviver apenas clandestinamente. Se bem que esse foi - e ainda é o caso - das ditaduras militares e religiosas. A censura e a rigidez moral castram a criatividade, mas não conseguem destruí-la.

Por outro lado, se a ciência serve à sociedade, ela deve prestar contas ao cidadão. Afinal, ao menos em pesquisa básica, quem paga a conta são os governos, a partir da coleta de impostos. E, como quem paga os impostos é o cidadão, podemos afirmar que a produtividade científica é financiada, em grande parte, pela sociedade.

É óbvio que existe também a pesquisa paga diretamente pela indústria, com fins lucrativos. Ou, ainda, a pesquisa bancada pelo governo, com fins militares. Com o desenvolvimento acelerado da tecnologia nos últimos 20 anos, essas linhas divisórias têm-se tornado cada vez mais invisíveis.

Um físico que desenvolva novo tipo de liga metálica pode estar interessado em suas propriedades a baixíssimas temperaturas (isso diz respeito à ciência básica, pois baixas temperaturas não são viáveis comercialmente), ou na sua utilização na construção civil (a ciência aplicada), ou na sua utilização em mísseis intercontinentais (a ciência bélica). Enfim, a liga metálica é a mesma, mas ela pode servir a propósitos completamente distintos.

Aqui, surge um dilema para o cientista: até que ponto a obrigação profissional deve interferir em sua atividade criativa? Será que o físico que trabalha em uma universidade deve divulgar seus resultados, sabendo que sua nova liga metálica pode ser usada em mísseis? Para citar um exemplo histórico, Leonardo da Vinci construiu várias armas de guerra para o seu patrono. Mas ele recusou-se a divulgar seus planos para a construção de um submarino, pois sabia que seu uso, aliado à perversidade do homem, provocaria mortes horrendas sob as águas.

Da Vinci não queria ter seu nome associado a tal máquina de destruição. Hoje, apenas um submarino da Marinha norte-americana é capaz de carregar 24 mísseis nucleares de alcance intercontinental, suficientes para destruir uma boa fração da vida na Terra. A lição dessa história é clara: nenhuma invenção permanecerá "escondida" por muito tempo. Alguém acabará por redescobri-la mais cedo ou mais tarde. Os norte-americanos ficaram boquiabertos quando os soviéticos detonaram uma bomba atômica logo após o fim da Segunda Guerra, seguida de uma bomba de hidrogênio.

O Projeto Genoma, que envolve centenas de cientistas espalhados pelo mundo, compete com laboratórios privados na corrida pelo mapeamento do genoma humano. A biotecnologia levanta uma série de novos desafios éticos, questões que a sociedade precisa confrontar. Recentemente, um trio de médicos anunciou, em Roma, que a clonagem de humanos é uma questão de tempo. E não muito. Várias pessoas têm verdadeira aversão à idéia de que será possível construirmos cópias exatas de um ser humano.

E tem mais: com a manipulação direta do gene, também será possível "encomendar" uma pessoa, como encomendamos um terno ao alfaiate. Essa cor de olhos, essa altura, essa cor de pele, um bom atleta, Q.I. alto... A primeira reação é: "Mas que absurdo! Isso deve ser proibido!" Inútil. A pesquisa continuará, proibida ou não, do mesmo modo que jornalistas, músicos e cineastas continuam a trabalhar sob regimes de ditadura. Países adotarão políticas diferentes, algumas mais liberais do que outras. Veja o exemplo recente do Reino Unido, que autorizou a pesquisa em embriões para buscar a cura de várias doenças. Portanto, fora laboratórios clandestinos, os cientistas podem sempre emigrar para países mais liberais.

É fácil criticar os cientistas pela sua "ganância", por esse apetite de querer sempre ir em frente. Mas essa é justamente a força da ciência. Sem essa curiosidade, ela entra em estagnação. O que a sociedade deve exigir dos cientistas é um compromisso moral com a verdade, um franco diálogo em que as repercussões das pesquisas são discutidas abertamente.

É hipócrita culpar o inventor da pólvora pela morte de todas as pessoas durante as guerras. Somos nós que vamos à guerra: nossos governos, nossos soldados, nossos cientistas...

*Artigo publicado no caderno Mais, da Folha de São Paulo, de 25/3/2001

**Professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA)

 





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Nº 1312 - Ano 27 - 04.04.2001