Busca no site da UFMG




Nº 1392 - Ano 29 - 17.04.2003

 

 

 

Fome zero vírgula... alguma coisa *

Romão da Cunha Nunes e Reginaldo Nassar Ferreira **

 

pesar da pobreza dos debates e das conhecidas divergências
internas, o grande programa social do governo Lula teve início com uma característica inédita em termos de política de combate à fome no país: em vez de episódico, assume a natureza de permanente durante o primeiro mandato do Partido dos Trabalhadores à frente do executivo nacional. Sob excelente perspectiva, pode-se afirmar, em comparação com governos passados, que poderá representar um avanço.

É bom lembrar que, em períodos de grandes secas, uma parcela dos nordestinos chegava a se alimentar de lagartos, mocós, calangos e preás - ao ponto de a pobre fauna arribar em busca de plagas mais hospitaleiras. Portanto, começar o mês com R$ 50 no crédito ou no bolso, se não representa a independência financeira, ao menos garante uma certa quantidade de alimentos na mesa, durante algum tempo.

Acreditando que "outro mundo é possível', como declarou no sofisticado ambiente dos Alpes suíços, o presidente, amparado pelas esperanças de mais de 50 milhões de eleitores, parece determinado a comprovar essa sentença, assim como crê ser possível compatibilizar desenvolvimento econômico e justiça social.

A fome é um problema mundial de difícil solução, que não se restringe à produção e distribuição gratuitas de alimentos. Emergencialmente, é possível controlar o equilíbrio econômico e social numa condição de que parte de uma sociedade trabalha e produz, enquanto outra consome, sem ônus. A longo prazo, no entanto, o favorecimento a consumidores que não produzem e sem condições de ressarcir, pelo menos, os custos de produção, além de gerar uma dependência indesejável, pode resultar no empobrecimento de grande camada da sociedade brasileira.

Mas o mais importante neste momento, independentemente das considerações econômicas ou financeiras, é a consciência de que aquilo que precisava ser feito era exatamente isso: criar, garantir e fortalecer um conjunto de condições básicas de sobrevivência para milhares de brasileiros, para depois integrá-los ao processo produtivo e remunerador. Assim, é de se esperar que, quando a sua proposta alcançar receptividade e solidariedade mundiais, iniciaremos uma era em que o espírito de esperança crescente há de prevalecer sobre o medo escravizador. E isso foi feito com ousadia e coragem, obtendo, senão a aceitação plena, o aplauso da comunidade internacional, o que, nas atuais circunstâncias, é extremamente alvissareiro, considerando que, em se tratando de políticas internacionais, a prudência e a diplomacia recomendam, em primeiro lugar, não descartar qualquer tipo de aliança ou oportunidade de parceria, por mais estranha que possa parecer. Em segundo lugar, não bastam bons projetos e propostas; é preciso produzir resultados e analisá-los em relação a custos e benefícios. E, por último, em quaisquer circunstâncias, sempre poderá haver uma oportunidade de mercado na formulação e implantação de novos projetos.

Para o consumo interno, não é necessário diploma superior de médico ou de nutricionista para saber que nenhum ser vegetal ou animal pode viver por muito tempo sem alimento. Que o diga o nosso sertanejo que no dia-a-dia vê a prole ser depauperada pela fome.

A curto prazo, é possível sobreviver à base de uma dieta pobre em nutrientes, composta de arroz, feijão e farinha, que representam os produtos básicos tradicionais do cardápio das populações mais carentes. A longo prazo, porém, esse cardápio não é capaz de garantir as vitaminas, proteínas e sais minerais necessários à plenitude de seu desempenho pessoal e profissional, uma vez que, apesar de se alimentarem até três vezes por dia, seguem invariavelmente esta dieta.

Segundo o cientista social Alain Tourraine, Lula representa "o compromisso com a mudança social e com os valores democráticos". Assim, é de se esperar que, quando a sua proposta alcançar receptividade e solidariedade mundiais, iniciaremos uma era em que o espírito de esperança crescente há de prevalecer sobre o medo escravizador.

Não há dúvida de que o programa é extremamente válido, oportuno e coerente com as propostas de palanque e com as necessidades de milhões de brasileiros, nossos irmãos. Não é tempo de criticar ou de exigir o impossível, o impraticável ou o inaplicável. É hora de fazer e "quem sabe faz a hora não espera acontecer", como diz a canção. Fome Zero ou Zero vírgula... alguma coisa, não importa, vale pelo desafio, vale pela intenção, vale pela solidariedade, vale pela experiência de quem a viveu e não a deseja para os seus semelhantes. Vale por tudo, até pelos erros iniciais.

* Artigo publicado pelo JC e-mail, de 9 de abril
** Professores da Universidade Federal de Goiás