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Nº 1433 - Ano 30 - 08.4.2004

 

 

O feijão no algodãozinho (e outras sementes)

Cecília Cavalieri França *

aira sobre a Escola de Música uma aura de encantamento tonalizado por um misto de desconhecimento e desconfiança. A cada instante, temos que justificar nosso lugar dentro da Universidade e lidar, em cada esquina, com ingênuos questionamentos sobre nossa `misteriosa' atividade. Quem somos e a que viemos? Trovador, bibelô ou penduricalho para enfeitar as noites, as paredes, os rituais? Afinal, música é conhecimento de quê? Tal estranheza é herança de um paradigma arcaico que determinou a exclusão do impalpável de um seleto grupo de disciplinas. O fazer artístico teve sua credibilidade abalada pelo imperativo da lógica, pela ditadura da razão e pela ilusão da objetividade.

O conhecimento se manifesta por muitas janelas, às quais Oakeshott (1968) se refere como vozes, maneiras diferenciadas de nos relacionarmos com o mundo e de compreendê-lo. Juntas, elas travam uma dinâmica conversação na qual as artes desempenham um papel tão relevante quanto delicado. A música é um campo legítimo do conhecimento com sua forma peculiar de reflexão, articulação e exposição de idéias. Ela é capaz de mobilizar nossa vida intelectual e afetiva e resgatar a capacidade de perceber o sensível e o inefável _ ganhos que ultrapassam a dimensão artística e tocam a dimensão humana. Ao engajarmo-nos no fazer musical, possibilidades expressivas são inauguradas, e nosso repertório simbólico, ampliado. Isto a torna uma poderosa voz entre aquelas que formam essa conversação na qual estamos inseridos. Mais do que uma ocupação, fazer música é um modo de ver e viver o mundo, de compartilhar nossas construções simbólicas particulares de uma maneira crítica e criativa.

Sim, a subjetividade nos é intrínseca: ela imprime nossa identidade e determina nossa essência. Muitas vezes, o nível de articulação simbólica e estética em uma performance musical ultrapassa os limites de expressão da linguagem verbal. Escrevia Langer (1942): enquanto as palavras obscurecem, a música é capaz de dizer o indizível, explicar o inexplicável. Não é difícil para um observador sensato reconhecer quando uma performance musical é satisfatoriamente expressiva e consistente. Mas não é tão fácil descrevê-la de uma maneira objetiva devido à lacuna epistemológica que separa o pensamento musical e o conceitual (Johnson, 1997). Essa peculiaridade torna-se explícita em situações como a prova específica do Vestibular de Música. Enquanto a necessidade de explicitação de critérios de avaliação pode ser justificada, os parâmetros que nos infligem, reduzidos a tópicos supostamente objetivos, funcionam como camisas de força. Critérios fragmentários podem comprometer a integridade da experiência musical _ explicá-la, jamais.

Ah, o feijão? Um dia, crianças, plantamos uma semente em um chumaço de algodão molhado. Será que algum de nós se esqueceu da euforia de ver surgir o pequeno broto verde? E o que dizer da maquete do sistema solar montada com bolas de isopor? E a Pedra no meio do caminho, o Leilão de jardim? Experiências como essas podem apontar vocações futuras para as Ciências Naturais ou para as Letras. Ao chegar à Universidade, os alunos já acumularam uma bagagem considerável nessas áreas do conhecimento. Mas, infelizmente, poucos tiveram a sorte de experimentar semelhante encantamento em relação à música, banida da maioria dos currículos pelo discurso pragmático da utilidade e da razão. Resultados: o desconhecimento da nossa essência e a desconfiança quanto às nossas especificidades _ mesmo entre os acadêmicos; o grande público torna-se alvo fácil de perversos interesses comerciais que conseguem depauperar o gosto e engessar a atitude crítica; os jovens, ao terminar o ensino médio, apresentam um alarmante desequilíbrio entre o domínio das disciplinas tradicionais e a cultura artística _ que não `cai' no Vestibular. Pois passatempos como assistir a um filme de Herzog ou visitar a exposição de Picasso são considerados menos importantes do que passar o fim de semana estudando fórmulas e regras; os primeiros, certamente, não seriam esquecidos.

Arte e ciência, intuição e análise, objetividade e subjetividade, duelos dialéticos cansados de guerra, precisam assinar o tratado da paz! O fazer e o pensar a música não são atividades obscuras nem relaxantes (sic). O que aos ouvidos leigos soa etéreo ou comovente envolve habilidades físicas, intelectuais e expressivas extremamente refinadas que requerem dedicação e trabalho sistemáticos. Processos de desenvolvimento, da realização e da avaliação musicais são fontes perenes de questões de pesquisa. Trabalhamos incansavelmente no sentido de construir nossa identidade epistemológica, buscando equilibrar triângulos nada eqüiláteros: "música-subjetividade-ciência", "música-indivíduo-sociedade", "música-mercado-ética". Mas não pleiteamos o quesito objetividade no sentido cartesiano; ao contrário, torcemos para que músico e platéia, pesquisador e pesquisado se permitam exercitar o sensorial, o intuitivo e o afetivo. Deixo, então, a minha prece: que a Universidade possa acolher as diferenças, ser um espaço de tolerância onde a essência das várias áreas do conhecimento seja preservada; que nos permita ser fiéis ao estatuto intrínseco à nossa disciplina. Afinal, "cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é". Certo, Caetano?

* Cecília Cavalieri França, professora da Escola de Música. Doutora em Educação Musical pela Universidade de Londres.

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