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Nº 1444 - Ano 30 - 24.6.2004

 

 

O ciclo básico nas universidades*

Roberto Macedo**

auspiciosa a notícia de que o Ministério da Educação incluiu o ciclo básico na sua agenda de reforma universitária. Argumentei anteriormente que a pauta até então divulgada envolvia o risco de deixar à margem questões de interesse dos estudantes e seus pais, em particular a necessidade do ciclo básico. Sua adoção seria fundamental para atacar dois flagelos que assolam a juventude brasileira que busca o ensino superior: a escolha precoce do curso e a especialização prematura ao longo dele.

Jovens de 18 anos ou até menos são forçados a escolher este ou aquele curso sem estarem preparados para isso. É uma exigência de uma estrutura de ensino mal-assentada nos seus aspectos pedagógicos, na sua segmentação por faculdades, departamentos e cursos isolados uns dos outros, na sua falta de sintonia com o mundo do trabalho, na predominância dos interesses conservadores de docentes e administradores e até mesmo na sua organização em termos de espaço físico. Nossos vestibulandos passam por uma inquisição na qual são mentalmente torturados a escolher um curso, quando ainda não conhecem bem nem a si mesmos, no sentido de seus interesses, aptidões e de potenciais ainda por desenvolver. Sobre o mundo da educação e do trabalho, também não dispõem de informações em quantidade e qualidade suficientes para assegurar uma escolha com alta probabilidade de revelar-se adequada.

Portanto, um ciclo básico de dois anos, com um elenco de disciplinas mais genérico e aberto à livre escolha daria mais tempo para o estudante avançar em maturidade. Com os jovens chegando à Universidade ainda imaturos para escolher e desinformados para tanto, não é pedagogicamente recomendável injetar-lhes uma carga de conteúdos específicos. Estes também revelam-se inadequados porque são apresentados como básicos, mas nem sempre bem relacionados com a especialização ainda mais profunda que vem a seguir. Dado esse quadro, costu mam vir o desinteresse, a busca precoce de estágios profissionais como fuga de um ensino frustrante de expectativas ­ quando não o abandono do curso ­, a necessidade de um novo vestibular, distúrbios psicológicos, desajustes profissionais e ocupacionais.

A inadequação da estrutura de ensino ao mercado de trabalho reside no fato de que este é regido por ocupações, cargos ou funções, e não necessariamente pelos cursos ou profissões em que se segmenta a universidade. Quando há o requisito de curso superior, muitas vezes os recrutadores não especificam um deles. Economistas, administradores, advogados, contadores e engenheiros podem disputar um mesmo cargo no setor financeiro. No caso do governo, vários cargos são preenchidos por concursos que aceitam diplomas de qualquer curso superior, como é o caso da carreira diplomática ou das profissões ligadas à fiscalização de tributos. Isto aponta para a necessidade de uma formação mais geral, que facilite a absorção pelo mercado de trabalho, pois é preciso ter condições de buscar um leque mais amplo de oportunidades ocupacionais do que o ditado especificamente pelo curso escolhido.

Quanto à segmentação do ensino em cursos, departamentos e faculdades que não se comunicam entre si, ela é obviamente incompatível com a idéia de um ciclo básico envolvendo disciplinas comuns a esses segmentos. É claro que, se houvesse o interesse de docentes e administradores em avançar nessa direção, muito já se teria conseguido, pois nem tudo depende de uma reforma universitária que ponha o ciclo básico como exigência ou diretriz legal. Mas diante do conservadorismo que impera nos meios acadêmicos, insensíveis às necessidades dos estudantes, não vejo outro caminho. Até porque esse conservadorismo costuma refugiar-se em dificuldades legais para uma adoção mais abrangente do ciclo básico, como a inflexibilidade do número de vagas autorizadas para os vários cursos e a necessidade de um novo vestibular para mudança de curso, caso o estudante queira rever sua escolha. Com as faculdades isoladas umas das outras, às vezes por grandes distâncias, isso dificulta, quando não impede, a movimentação necessária para que estudantes de várias áreas freqüentem, juntamente com seus pares de outras, uma determinada disciplina admitida pelo ciclo básico. Em outras palavras, seriam necessários prédios e salas de aula onde essas disciplinas fossem oferecidas pelos mesmos professores e onde estariam presentes alunos ligados às várias unidades.

Dado esse quadro fortemente consolidado há décadas, tampouco vejo condições de ser radicalmente modificado em curto prazo, na linha do sistema adotado pelos 'colleges' americanos, nos quais o estudante ingressa sem necessariamente escolher uma área de especialização, várias das quais, como Direito e Medicina, são deixadas para a pós-graduação. O prudente seria começar o ciclo básico por áreas afins, como Economia, Administração e Contabilidade, que não carecem de ter cursos segmentados já a partir do primeiro ano.

Com a adoção desse ciclo, o estudante faria o vestibular para um conjunto de áreas, mas sem escolher previamente uma delas, só o fazendo a partir do terceiro ano. À medida que a idéia se consolidar, o ciclo básico incorporaria também outras áreas, tendo como meta final sua adoção em comum para todos os estudantes de uma mesma universidade. Mesmo sem descer aos detalhes e longe de seu formato final, a inclusão do ciclo básico na agenda da reforma universitária tem o mérito de pôr o assunto em discussão, o que era evitado pelos responsáveis pelo ensino superior no país.

* Artigo publicado pelo jornal Estado de São Paulo no dia 17 de junho

** Economista, pesquisador da Fipe/USP e doutor pela Universidade de Harvard dos Estados Unidos


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