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Nº 1445 - Ano 30 - 7.1.2004

 

 

Cotas: mérito ou justiça social?

Adair Carvalhais Júnior*

ão há dúvida de que vivemos num país extremamente excludente. Nem seriam necessários os dados estatísticos, pois a exclusão, para qualquer lugar que olhamos, chega a ser escandalosa.

Agora que o governo federal resolveu tratar do problema no âmbito do ensino público, coloca-se uma boa oportunidade para nos voltarmos para as universidades, particularmente a UFMG. Universidades que não poderiam deixar de expressar, em diversos aspectos, este escândalo que parece só se intensificar: quantos negros ou pobres estudam ou ministram aulas e quantos negros ou pobres são faxineiros e motoristas, para ficar em poucos e triviais exemplos.

Fazendo um pequeno parênteses, é interessante observar, no interior da UFMG, a elaboração de mecanismos "sutis" de exclusão daqueles que supostamente são iguais: na Faculdade de Odontologia não é "qualquer" professor que pode parar seu carro no estacionamento coberto e no ICB não é "qualquer um" que pode ultrapassar a cancela que delimita tal "espaço público". No entanto, as universidades não são apenas espaços de expressão da exclusão, mas de sua reprodução, de uma maneira que ainda não vi sequer mencionada, quanto mais discutida. Esta falta de debate pode ser a responsável por afirmações como a do vice-reitor, professor Marcos Borato, segundo o qual o vestibular seria "o único critério de inclusão" da UFMG ( entrevista publicada na edição 20 do Boletim da Apubh, de janeiro de 2004). Se a imensa maioria dos inscritos no vestibular fica impedida de se matricular nas universidades, como este concurso poderia ser visto como instrumento de inclusão?

A utilização cada vez mais intensa do recurso à isenção da taxa de inscrição no vestibular me parece ser, por si só, uma demonstração por demais eloqüente do quanto a UFMG é excludente. Mas na mesma oportunidade o professor Borato, talvez involuntariamente, ofereceu a pista para a compreensão de como as universidades reforçam, realimentam e reproduzem a exclusão. Ele disse: "não podemos abrir mão do mérito, que é importantíssimo" [...] Não seria precisamente este critério que sustenta aqueles que se opõem ao sistema de cotas? Como sustenta _ ou deveria _ todas as disputas na Universidade, desde o vestibular até as bolsas de pesquisa, passando pelos mais diversos âmbitos?

Na realidade o mérito nas universidades não é um mero princípio ou critério, mas um verdadeiro dogma: o melhor deve ter mais que o pior e ponto! Mas o mérito não é neutro, dissociado das condições socioeconômicas e relacionado apenas ao esforço pessoal do indivíduo. O mérito é _ e não vejo nada tão óbvio _ o mais injusto resultado do próprio processo histórico de exclusão da maior parte da população brasileira dos bens públicos _ aqueles que, como as universidades, são sustentados por todos, mas dos quais apenas alguns podem desfrutar.

O acesso ao ensino superior público vê-se transformado, assim, num prêmio para uns poucos quando deveria ser um direito de todos e de qualquer um. Para que este dogma se pareça com critério objetivo, o discurso acadêmico inverte os termos ao afirmar que às universidades, centros de excelência, de produção e difusão do saber, devem ter acesso apenas os "melhores". Por que o mérito deve ser um critério de ingresso na universidade e não de saída? Por que as universidades, sendo tudo isto, não podem receber "qualquer um" devolvendo à sociedade aquilo que ela pagou. Não seria esta a maior demonstração do mérito universitário? Não seriam as universidades, abertas a "qualquer" cidadão e dispostas a oferecer a "qualquer um" o que têm de melhor, as instituições mais aparelhadas para contribuir com a justiça social? O debate sobre o sistema de cotas traz a vantagem de tocar, ainda que superficialmente, no dogma do mérito. Mas por uma incoerência, que é apenas aparente, desconhece, ao mesmo tempo, tal dogma pois não discute as condições de permanência daqueles que, "sem merecer", poderão estudar nas universidades públicas.

Os alunos que usufruirão deste sistema _ muito provavelmente grande parte daqueles que obtiveram isenção da taxa de inscrição no vestibular _ não terão passado pelos melhores colégios nem pelos treinamentos oferecidos pelos cursos pré-vestibulares. Terão condições de se locomover diariamente até a universidade e de nela se manter em cursos diurnos que, sem qualquer razão, os obrigam a estudarem pela manhã e à tarde? Poderão adquirir os livros necessários e se alimentar adequadamente? Trarão para o interior das universidades uma cultura diferenciada, fruto da vida em áreas menos favorecidas. Estarão os professores, acostumados a lidar apenas com os "melhores", preparados para ministrar aulas para estes alunos? Como esses estudantes sobreviverão no interior de uma universidade regida pelo mérito? Dividirão as salas de aula com colegas que não se beneficiaram das cotas. Estarão preparados _ eles, mas também os colegas e os professores _ para uma convivência pacífica e produtiva, destituída de preconceitos?

Evitando-se discutir profundamente o dogma do mérito o sistema de cotas pode vir a ser apenas mais uma boa oportunidade perdida de se debater a extraordinária injustiça social que divide este país em um número cada vez maior de pedaços. Fica para uma outra oportunidade a discussão da experiência de enfrentamento do dogma do mérito no acesso à educação que vem sendo implementada na Escola Fundamental do Centro Pedagógico desta Universidade.

*Professor da Escola Fundamental do Centro Pedagógico

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