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Nº 1446 - Ano 30 - 8.7.2004

 

 

Repetência e evasão escolar: sintomas da exclusão social*

Antonio Benedito Lombardi e Joel Alves Lamounier**

ecentemente, este BOLETIM publicou dois artigos intitulados A volta da pedagogia da repetência e São os pobres que fracassam , respectivamente nas edições 1.436 e 1.439.

O primeiro deles atribui o fracasso escolar dos alunos aos professores afirmando que "descobrimos que o problema não é de aprendizagem, mas de ensinagem", portanto o remédio é investir na formação e capacitação dos professores. O segundo artigo discorda daqueles que explicam que a progressiva queda da qualidade no ensino público, demonstrada pelas avaliações do Sistema Nacional de Educação Básica, deve-se ao baixo nível socioeconômico dos alunos, à precariedade dos seus ambientes socioculturais, à desestruturação familiar.

Em resumo, discorda de que os fatores causais são determinados pela pobreza. A autora deste último artigo, a exemplo da do primeiro, responsabiliza também o sistema educacional pelo fracasso das crianças e adolescentes vindos de segmentos de baixa renda. Sugere até como remédio "a busca de estratégias pedagógicas adequadas às características e às necessidades desses alunos carentes hoje incorporados no sistema". A autora completa que "a questão não está propriamente na forma de organização escolar (ciclos, séries), mas na efetividade do trabalho pedagógico".

Obviamente, não se pode concordar totalmente com estas explicações, principalmente no contexto da exclusão social que produz impactos antes, durante e após a passagem da criança pela escola. É preciso avançar na compreensão do fenômeno da repetência e evasão escolar. Alguns dados e a conjuntura atual devem ser considerados.

Se, por um lado, a taxa de mortalidade infantil caiu significativamente e, se por outro, nas últimas décadas o ingresso no ensino fundamental foi universalizado (hoje praticamente 100% das crianças que atingem a idade escolar estão matriculadas na 1ª série), é necessário perguntar em que condições essas crianças e seus familiares estão ingressando na escola. Nas regiões metropolitanas, milhões de crianças vivem em barracos quase sempre pertencentes a famílias resultantes do êxodo rural. Verifica-se que precocemente essas crianças são expostas a múltiplos fatores de risco, e na idade da entrada para a escola muitas apresentam os impactos biopsicossociais das adversidades experimentadas nos primeiros anos de vida. Concomitantemente, são evidenciados nos seus familiares também uma multiplicidade de problemas biopsicossociais, que afetam o seu bem-estar. Não se trata apenas da pobreza, mas da miséria e freqüentemente da degradação humana.

Nessas condições, apesar da resistência das crianças, torna-se difícil ingressar, aprender e permanecer na escola, porque inúmeros fatores combinados convergem para limitar o funcionamento de estruturas do sistema nervoso central e o desenvolvimento do psiquismo de forma a dar sustentação e motivação para a aprendizagem. A presença desses fatores adversos impede o estabelecimento de uma rede social básica de apoio de uma criança na escola. Nesse ambiente, os paradigmas e as prioridades convencionais estão subvertidos e freqüentemente a energia vital de crianças e familiares está canalizada para o atendimento de necessidades básicas.

Não se pretende com estas considerações isentar a escola e o setor da saúde. O que se propõe é a interlocução desses setores com a comunidade. Os Conselhos de Saúde e de Educação são os fóruns adequados para isso ocorrer. O que não contribui é eternizar o uso de palavras e frases de efeito, tais como "o problema não é de aprendizagem mas de ensinagem", "a pedagogia da repetência", ou a "medicalização", a "psicologização", a "sociologização" do fracasso escolar, numa demonstração de inércia intelectual.

Enfim, constata-se uma abundância de conhecimentos oriundos de áreas isoladas, fragmentados e não socializados, uma vez que não são traduzidos em políticas públicas. Por exemplo, pode-se citar uma política de caráter preventivo, a oferta de educação infantil, creche e pré-escola de qualidade. Hoje, menos de 30% desse público é atendido. A ampliação da oferta da educação infantil seria uma medida de grande impacto sobre o crescimento e o desenvolvimento infantil, já que, com ela, um número significativo de crianças já estariam lendo, escrevendo e até calculando no nível esperado para a idade, ao ingressarem na primeira série do ensino fundamental.

O rompimento das barreiras que dificultam a interdisciplinaridade e a intersetorialidade, a derrubada do preconceito de que o excluído não tem nada a acrescentar nesse debate e a mudança da postura de muitas instituições, que, apesar de públicas, nem sempre se responsabilizam ou se relacionam com a comunidade, são estratégias promissoras de enfrentamento dos inúmeros efeitos da exclusão social, entre eles as doenças e o fracasso escolar.

*Baseado na dissertação Repetência e evasão escolar em classe socioeconômica desfavorecida: um estudo de 39 crianças de 1 a série de uma escola pública _ história de vida, perfil biopsicossocial , defendida pelo professor Antônio Benedito Lombardi na Faculdade de Medicina

** Professores do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina


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