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Nº 1463 - Ano 31 -18.11.2004

 

 

 

Quem é cientista?*

José Maria Alves da Silva**

"A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas

recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências

que podem ser chamadas ´ciências´ conforme nossa vontade "

(Francis Bacon)

 

noticiário sobre o andamento das discussões em torno da lei de biossegurança freqüentemente passa a impressão de que existe uma nítida linha divisória separando a classe científica, que é favorável ao projeto, de um restolho contrário composto por leigos ignorantes e fanáticos das mais variadas motivações ambientais, religiosas ou políticas.

Nesse debate, entretanto, antes de dizer que os cientistas são favoráveis é preciso saber primeiro quem merece ser chamado de cientista. Um exame da biografia dos maiores cientistas da história mostra que, diferentemente dos que hoje defendem a soja transgênica, eles, em geral, não estavam comprometidos com interesses de terceiros, legítimos ou escusos; não trabalhavam para fortalecer poderes instituídos, omitindo fatos ou desconsiderando evidências, e pareciam movidos mais pelo desejo de desvendar mistérios do que de ganhar dinheiro.

Alguns pagaram caro pela independência, como Giordano Bruno que, em 27 de janeiro de 1593, se tornou prisioneiro do Santo Ofício, acusado de heresia por afirmar que a Terra não é o centro do universo, que o universo é infinito e que as estrelas não se encontram fixas em uma esfera cristalina. Depois de seis longos anos de julgamento, e diante de sua recusa em retratar-se, foi condenado à pena de morte, decretada em 8 de fevereiro de 1600 pelo `inclemente' papa Clemente VIII. Tornou-se, então, o mártir da ciência.

Albert Einstein nunca teve carro nem televisão. No Instituto de Estudos Avançados de Princeton tentou, durante 22 anos, estabelecer a teoria do campo unificado, num esforço tido como fracassado por aqueles que não sabem que a verdadeira atividade científica consiste mais em fazer perguntas do que em procurar respostas. Nesse ínterim, manteve grandes debates e correspondências com seus colegas sobre altas questões científicas e políticas. Auferia um salário relativamente modesto e nunca procurou capitalizar sua celebridade para ganhar dinheiro.

Diferentemente destes e de outros geradores do conhecimento básico que deflagraram a revolução tecnológica do século XX, grande parte dos que hoje clamam por maior autonomia para a CTNBio, um dos dispositivos da lei da biossegurança, não passam de tecnólogos ou tecnocratas disfarçados infiltrados nas universidades públicas, instituições estatais de pesquisa e no Ministério da Ciência e Tecnologia. Em vez de cientistas, como eles gostam de se autodenominar, prefiro chamá-los de `pesquisadores induzidos', posto que, quando não estão simplesmente fazendo lobby tecnológico, estão praticando `ciência conforme a vontade das corporações', mediante as mais disfarçadas formas de recompensas pecuniárias.

Nos países desenvolvidos, os pesquisadores induzidos geralmente estão lotados nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento das grandes indústrias de base tecnológica.No Brasil é diferente. Praticamente toda a atividade científica está concentrada nas universidades e instituições públicas de pesquisa, mas os pesquisadores gozam de ampla liberdade para prestar serviços a terceiros, mesmo quando são contratados sob regime de dedicação exclusiva.

Por meio de convênios e contratos de colaboração técnica, as empresas podem contar com os recursos das instituições públicas a custos bem mais baixos do que teriam se tivessem que manter departamentos próprios de pesquisa, com a vantagem de poder usar o manto sagrado da ciência como instrumento de marketing. Imagine um economista PhD contratado por um grande banco para pesquisar novos meios de aumentar-lhe os lucros. Entre chamá-lo de cientista ou de tecnocrata, quem, em sã consciência, optaria pela primeira denominação? Certos pesquisadores estão prestando serviços de natureza semelhante para as empresas de biotecnologia, só que são chamados de cientistas em vez de tecnocratas. Mere cem tratamento diferente só por serem engenheiros, físicos, químicos ou biólogos, em vez de economistas?

Tecnocratas são profissionais que detêm conhecimentos técnicos sofisticados e dirigem esse poder para os objetivos das empresas que os contratam. Embora ostentem o pomposo título de `Philosopher Doctor' (PhD), eles, em geral, são avessos à filosofia, ao passo que os autênticos cientistas são antes de tudo filósofos, entendido aqui por filósofo aquele que pensa criticamente, que sabe fazer as grandes perguntas científicas e busca explicações para os fenômenos desconhecidos, sem segundas intenções.

Hoje, são bem conhecidos os danos causados pelo DDT e pelos clorofluorcarbonatos (CFCs). Entretanto, durante muito tempo estas substâncias sintéticas foram consideradas inofensivas. Os CFCs, que eliminam a camada de ozônio, foram desenvolvidos por Thomas Midgley, em resposta à demanda por alternativas mais seguras a produtos químicos inflamáveis e tóxicos usados como resfriadores em geladeiras. Em 1941, quando recebeu o prêmio Priestley de Química, Midgley brindou a platéia com uma demonstração teatral. Inalou vapores de CFCs derramados num prato raso, prendeu a respiração, enquanto acendia uma vela e em seguida apagou-a com um sopro triunfante.

A platéia saiu dali convicta de que o agente químico não era inflamável nem tóxico para os seres humanos e, portanto, inquestionavelmente seguro. Trinta e três anos depois, Sherwood Rowland e Mario Molina mostraram como os CFCs atacam a camada de ozônio, pelo que receberam o prêmio Nobel em 1995.

Antes de dizer que os cientistas são favoráveis ao projeto de lei da biossegurança, os meios de comunicação deveriam procurar saber quem nesta história está mais para Midgley ou para Rowland e Molina.

* Artigo publicado pelo JC e-mai l no dia 20 de outubro de 2004

** Economista e professor do programa de pós-graduação em Economia Aplicada da Universidade Federal de Viçosa (UFV)

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