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Nº 1476 - Ano 31 - 17.3.2005


Guardiã de miguilins

Homenageada pelo Centro de Memória da Medicina, Calina Guimarães orienta suas energias para preservar a obra do primo, Guimarães Rosa

Regis Gonçalves


Calina Guimarães: vida dedicada aos jovens
Foto: Elber Faioli

açula de uma família de 13 filhos, Calina Guimarães não foi uma criança fácil. "Eu era muito mimada, fazia tudo o que queria", confessa ela, aos 80 anos, recém-completados, durante homenagem prestada pelo Centro de Memória da Medicina (Cememor) da UFMG. A essa altura da vida, um balanço de suas "artes" confirma a vocação de independência e rebeldia dos tempos de menina.

De fato, ela sempre fez tudo o que quis. E não foi pouco: formou-se em Enfermagem pela UFMG, em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) _ quando eram poucas as mulheres na profissão _, viajou por duas ocasiões aos Estados Unidos para a pós-graduação, especializou-se em obstetrícia e fez mais de três mil partos, até se aposentar, aos 70 anos, como professora na UFJF.

Nascida na pequena Cordisburgo e prima do escritor João Guimarães Rosa, o Joãozito, com quem conviveu na infância, a "menina mimada", muito cedo, deixou a terra natal para estudar e só voltou aposentada para dar novo rumo à vida. Saudosa, evoca as visitas que Rosa fazia à fazenda Sarandi , de seu pai, Adonias Guimarães, tio do escritor. "Sempre que publicava um livro novo, ele mandava um exemplar para o meu pai", recorda.

Reencontro

Os anos passaram, mas o destino havia reservado um "reencontro" entre Calina Guimarães e o primo escritor. Médico como ela, Rosa abandonara a medicina para dedicar-se à diplomacia e à literatura. Calina também estava prestes a deixar de ser médica. "Com a proximidade da aposentadoria compulsória, resolvi me preparar para deixar a profissão. Não queria ser uma médica velha e ultrapassada", diz.

A oportunidade de mudar de rumo surgiu quando, comparecendo ao enterro de um parente em Cordisburgo, deparou com o Museu Casa de Guimarães Rosa fechado e inativo. "Decidi fazer o museu funcionar e mexi meus pauzinhos. Fui atrás de amigos e políticos _ tenho muitos na família _ e o museu foi reaberto".

Irrequieta, Calina queria fazer do museu um espaço vivo e dinâmico, propiciando aos visitantes um contato mais íntimo com a obra de Rosa. E passou a convocar colegiais da cidade _ meninos de todas as classes sociais _ para servirem de guias no museu. Mas logo percebeu que, para se saírem bem nessa tarefa, era essencial que eles conhecessem a obra do escritor. Calina passou a ler textos para seus pupilos e a iniciá-los na arte da narração das "estórias" rosianas.

Além de Cordisburgo

Foi o passo inicial para a criação do hoje célebre grupo de contadores de estórias Miguilins , importante projeto de iniciação dos jovens no conhecimento de uma das mais ricas literaturas do Brasil e oportunidade para a inserção social de meninos pobres da pequena cidade.

A empreitada contou com o apoio decisivo da sobrinha Dôra Guimarães, que junto com sua parceira Elisa Almeida, forma o grupo Tudo era uma vez, de contação de estórias. As duas viraram monitoras dos Miguilins e até hoje se dedicam à formação técnica dos contadores-mirins, que já somam três gerações. Faz tempo que os Miguilins venceram as fronteiras de Cordisburgo para se torna rem conhecidos em outras cidades do país, onde se apresentam regularmente: Belo Horizonte, São Paulo e Brasília, principalmente. "Estimulei os meninos a estudarem, a fazer vestibular, e muitos já estão na universidade. Este ano mesmo, quatro deles passaram na UFMG", revela Calina, sem esconder o orgulho.

"Sempre fui muito dinâmica, aos 80 anos minha cabeça ainda está repleta de idéias", garante Calina Guimarães, recusando-se a recolher-se à inatividade. E já imaginou até a criação de um curso pré-vestibular, para que outros meninos pobres de Cordisburgo também possam estudar: "Apesar de tudo que já fiz, descobri agora que minha missão na vida foi estimular os jovens". Para isso, coragem e generosidade não faltam a essa senhora. Ainda que um dia seu primo Joãozito tenha ensinado que "viver é um negócio muito perigoso".