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Nš 1497 - Ano 31
25.08.2005



Clima: o império contra-ataca*

José Goldemberg**

ortemente pressionado pelos ambientalistas e pelos outros países participantes da conferência das grandes nações industrializadas (G8) em Gleaneagles, na Escócia, sob a presidência do primeiro-ministro da Inglaterra, Tony Blair, os Estados Unidos tiveram de aceitar uma declaração bastante positiva no que se refere às causas do aquecimento global e da necessidade de “atuar com urgência” para enfrentar este problema.

No entanto, passadas algumas semanas, os EUA se juntaram a dois aliados tradicionais, Austrália e Coréia do Sul, e conseguiram o apoio da Índia e da China para uma “associação” que pode ser interpretada como um ataque direto às recomendações adotadas na Escócia. É também um ataque a qualquer plano de reforçar o Protocolo de Kyoto, o único mecanismo internacional existente que lida efetivamente com o problema do aquecimento global.

O Protocolo de Kyoto é mandatório e determina que os países industrializados deverão reduzir, até 2012, suas emissões de dióxido de carbono e outros gases responsáveis pelo efeito estufa em cerca de 5%, tomando como referência os dados de 1990. Com ele, criou-se todo um mercado de compra e venda de emissões que beneficia os governos envolvidos e países em desenvolvimento, como o Brasil, que não têm a obrigação de reduzir suas emissões, mas podem fazê-lo a baixo custo. A “associação” liderada pelos EUA ignora o Protocolo de Kyoto e se propõe a promover o uso de tecnologias, algumas das quais já existentes e outras em desenvolvimento, em que este país tem investido pesadamente.

Apesar de listar várias tecnologias, é óbvio que a ênfase da associação é no uso do “carvão limpo”, do qual os EUA e a Austrália são grandes produtores, bem como a China e a Índia. A primeira interpretação imediata da razão pela qual a “associação” foi criada é que ela resultou da ação do lobby da indústria do carvão nos EUA, que é mortal inimigo do Protocolo de Kyoto. A segunda interpretação – que decorre da primeira – é que os Estados Unidos estão tentando abrir com ela um novo grande mercado para seus produtos e tecnologias ambientais. Em outras palavras: o “império contra-ataca”.
No lugar de adotar metas quantitativas para reduzir suas próprias emissões, por meio de leis e regulamentos que a União Européia e até o Estado da Califórnia já adotaram, os Estados Unidos se propõem a investir em pesquisas de novas tecnologias (que gerarão novas vendas), quando já há tecnologias a custos aceitáveis para adoção imediata. Novas tecnologias enfrentam incertezas técnicas e certamente custos mais elevados, como capturar o carbono emitido na queima do carvão e armazená-lo no oceano (em águas profundas) ou em poços de petróleo exauridos.

A nova iniciativa americana é consistente com a recente decisão de “perdoar” a Índia por ter desenvolvido armas nucleares, uma vez que ela poderia comprar agora tecnologia nuclear dos EUA. Com isso o Tratado de Não-Proliferação Nuclear passa a ser letra morta, o que vai encorajar outros países a desenvolver armas nucleares, já que fazê-lo não tem maiores conseqüências. O sonho dos presidentes Kennedy, dos EUA, e Kruchev, da União Soviética, de eliminar as armas nucleares da superfície da Terra, formulado 40 anos atrás, foi, na prática, abandonado.

O que mais surpreende é a Índia e a China, nominalmente membros e líderes do Grupo dos 77 (que reúne os países em desenvolvimento), abandonarem o Brasil e outros parceiros e entrarem para uma “associação” que pode até beneficiá-las em curto prazo, mas que enfraquece a Convenção do Clima e o Protocolo de Kyoto. Com isso, as perspectivas da Conferência de Montreal, em novembro, que poderia reforçar e eventualmente discutir um novo “pacto” para reduzir as emissões globais, expandindo os compromissos adotados em Kyoto, correm o risco de se tornar irrelevantes.

Mais chocante, porém, é o fato de que os “líderes dos cinco grandes” entre os países em desenvolvimento (Índia, China, Brasil, África do Sul e México) foram convidados a participar da conferência da Escócia e firmaram um comunicado conjunto. Esse comunicado foi considerado, por muitos, tímido e equivocado – dando até ênfase à importância da adaptação às mudanças do clima, e não à tarefa essencial, que é a de evitá-las.

Essa posição é de uma perversidade cruel com os países mais pobres, que não são responsáveis pelo problema, mas não têm condições nem recursos para se adaptar às mudanças climáticas. Apesar disso, o comunicado revelou certa solidariedade entre eles, que é quebrada agora, com a Índia e a China associando-se a um esquema que servirá mais aos produtores de equipamentos do que a políticas de desenvolvimento sustentável. Fica enfraquecida também a posição da Inglaterra, que, aparentemente, foi mantida à margem da nova “associação”, uma vez que ela não foi nem mencionada no comunicado final da conferência da Escócia.
O conselheiro científico de Tony Blair, sir David King, reagiu imediatamente, expressando dúvidas de que o novo acordo produza resultados sem estabelecer limites para as emissões. Além disso, muitos ambientalistas consideram o plano cosmético e que vai servir apenas aos interesses dos países que vendem tecnologia de carvão, algo que já está ocorrendo agora.

*Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, de 16 de agosto
**Secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo
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