Busca no site da UFMG
Nš 1499 - Ano 31
08.09.2005



A avaliação da performance das escolas*

Rubem Alves**

título mais simples para esse artigo seria Avaliação da educação. Mas não quero misturar “educação” com aquilo que as escolas fazem. A educação é algo que transborda os limites das escolas. Por vezes, ela se choca com as escolas. Acho que foi o escritor Mark Twain quem disse que não permitia que a escola interferisse na sua educação. Educação é aquilo que passa a fazer parte do nosso ser. Parte do que sou tem a ver com a música erudita sobre a qual nada se disse nas escolas que freqüentei. Era como se não existisse. Não fazia parte do programa. O mesmo é verdadeiro em relação ao meu prazer em ler, escrever, contemplar a natureza. Essas coisas são parte de mim mesmo, mas não foi nas escolas que as aprendi.

Quando um professor tenta ensinar algo, ele tem de pressupor que aquilo é importante, não vai ser esquecido, vai fazer uma diferença na vida do seu aluno. Caso contrário, seu trabalho não terá sentido. Assim, ele deve ter a curiosidade de saber sobre o destino das informações e habilidades que tentou ensinar. O que aconteceu com elas?

Quero sugerir um método para se fazer isso valendo-me de uma metáfora. Imagine que você resolveu se dedicar ao negócio de fabricação de salsichas. Para transformar carne em salsichas, há uma máquina. Numa das extremidades da máquina, coloca-se a carne. Aperta-se um botão. A máquina põe-se a funcionar. Da outra extremidade saem as salsichas, prontinhas. Para avaliar se a máquina é comercialmente vantajosa, basta comparar o peso da carne que foi colocada no funil de entrada com o peso das salsichas produzidas.

Se, na entrada, foram colocados 100 Kg de carne e saíram 95 kg de salsichas, a máquina é ótima, mas se só saírem 10 kg de salsichas, a máquina não presta. Imaginei que se poderia avaliar o desempenho das escolas por meio de um exame elaborado segundo o modelo da máquina de salsichas. O objetivo seria comparar o que entrou com o que ficou.

Freqüentei escolas por 17 anos. Multipliquei pelo número de meses, dias, horas e anos: cheguei ao número 16.320. Esse é o número de horas que passei em carteiras ouvindo as coisas que os professores tentavam me ensinar. É claro que esse número deve estar errado. De qualquer forma, é muito grande o tempo que se passa nos bancos escolares. O que sobrou? O exame seria como descrevo a seguir.

C
“O exame que proponho quer saber o que sobrou. Se os examinandos se prepararem para o exame, os resultados não revelarão o que realmente sobrou, mas o que foi colocado na memória na última hora”
C

Primeiro: o programa seria constituído de tudo, absolutamente tudo que se pretendeu ensinar nesses 17 anos, do primeiro ao último ano. Segundo: aqueles que vão fazer o exame não assinarão os seus nomes porque o que se procura não é o desempenho individual, mas o desempenho da máquina escolar. Terceiro: será proibido freqüentar cursos preparatórios para tais exames. Será proibido também recordar a matéria.

Se isso fosse feito, o propósito do exame seria abortado. Imagine que um diabético tem de fazer um exame de sangue para testar seu nível glicêmico. Mas ele, malandro, querendo enganar o médico, na véspera do exame só come alface com bife e, no dia seguinte, pela manhã, toma um comprimido de Amaril. O resultado do exame seria totalmente falso.

O aprendido é aquilo que fica depois que o esquecimento fez o seu trabalho. O exame que proponho quer saber o que sobrou. Se os examinandos se prepararem para o exame, os resultados não revelarão o que realmente sobrou, mas o que foi colocado na memória na última hora. Eu me sairia muito mal.

Não me lembro das classificações das rochas. Lembro-me dos nomes “dolomitas” e “piroclásticas”, mas não sei o que significam. Esqueci-me do “crivo de Eratóstenes”. Não sei fazer raiz quadrada. Não sei onde se encontra a serra da Mata da Corda. Também me esqueci das dinastias dos faraós e dos nomes dos imperadores romanos. Lembro-me do princípio de Arquimedes, mas não sei a lei de Avogadro. Não aprendi latim, o que me causa grande dor porque latim é música. Lembro-me de pouquíssima coisa sobre análise sintática, o que não me faz falta para escrever.

Dos 100% de saberes que as escolas tentaram enfiar dentro de mim, só sobrariam uns 10%. Você depositaria suas economias, mensalmente, num fundo de investimento, por 17 anos, se soubesse que depois desse tempo receberia só 10% do que depositou?

Alguns concluirão que a culpa é dos professores. Outros, que a culpa é dos alunos. Não creio que a ela seja dos professores ou dos alunos. Acho mesmo é que é da carne que se põe na máquina: ela está estragada. As salsichas cheiram mal. O nariz as reprova. Se forem comidas, elas produzirão perturbações gástricas. O jeito é vomitá-las.

Concluo: a performance das escolas melhorará se a carne estragada for substituída por uma carne que produza salsichas apetitosas.

 

*Artigo publicado no caderno Sinapse, da Folha de São Paulo, em 30 de agosto
**Educador e escritor

Esta página é reservada a manifestações da comunidade universitária, através de artigos ou cartas. Para ser publicado, o texto deverá versar sobre assunto que envolva a Universidade e a comunidade, mas de enfoque não particularizado. Deverá ter de 4.000 a 4.500 caracteres (sem espaços) ou de 57 a 64 linhas de 70 toques e indicar o nome completo do autor, telefone ou correio eletrônico de contato. A publicação de réplicas ou tréplicas ficará a critério da redação. São de responsabilidade exclusiva de seus autores as opiniões expressas nos textos. Na falta destes, o BOLETIM encomenda textos ou reproduz artigos que possam estimular o debate sobre a universidade e a educação brasileira.