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Nº 1529 - Ano 32
04.05.2006

Das estatísticas de cor ao estatuto da raça*

Simon Schwartzman**

uas décadas atrás, o IBGE demonstrou que a “cor” dos brasileiros associa-se a uma série de importantes características sociais. Os “pretos” e “pardos” recebem remuneração inferior pela mesma função e têm níveis educacionais médios mais baixos que os brancos na mesma faixa etária.

Junto com a divulgação dessas estatísticas, começava a ganhar corpo um ataque frontal contra a imagem do Brasil, visto como um país culturalmente homogêneo e racialmente integrado, cultivada desde Dom Pedro II pelas agências de governo encarregadas da educação e da cultura. A antiga imagem de integração e homogeneidade coexistia com a manutenção de milhões de pessoas à margem dos benefícios e da cultura oficiais, falando mal a língua, incapazes de entender a educação das escolas e sentindo-se inferiorizadas pela cor da pele e por seus antepassados negros e indígenas.

A reorientação dos anos recentes começou a inverter por completo os termos do problema. Dali em diante, a interpretação “correta” passou a ser: o Brasil é um país racista, marcado pelo preconceito e discriminação. Igualdade formal e harmonia entre as raças são apenas discursos ideológicos que ocultam as diferenças. É necessário denunciar tais mitos, criar leis que reconheçam as diferenças, atribuir novos direitos aos discriminados e compensá-los pelas perdas e sofrimentos do passado. Em vez da falsa harmonia das três raças, as crianças devem aprender nas escolas a história maldita da discriminação e do preconceito. A cultura a estimular não deve mais ser a cultura erudita, dos brancos, mas a cultura popular, das comunidades pobres e dos negros.

O projeto do Estatuto da Igualdade Racial, que o Congresso está a ponto de aprovar, pretende consagrar e transformar em ideologia oficial essa nova interpretação da sociedade brasileira. O estatuto é uma monstruosidade jurídica e conceitual. Ele pretende obrigar todas as pessoas a se classificarem como brancos ou afro-brasileiros nos documentos oficiais, ignorando os milhões que não se consideram nem uma coisa nem outra. O estatuto não reconhece a existência dos descendentes das populações indígenas, o grupo mais discriminado e sofrido da história brasileira.

A partir daí, ele introduz direitos especiais para os afro-descendentes na saúde, educação, mercado de trabalho, justiça, entre outros setores. Os direitos que o projeto de estatuto pretende assegurar não são apenas os direitos humanos, individuais e coletivos reconhecidos em nossa tradição constitucional – e que devem ser garantidos a todos.

O que o projeto tem principalmente em vista é novo direito a reparações; reparações supostamente devidas a uma categoria social, os afro-brasileiros, e que deverão ser pagas por outra categoria social, os brancos, inclusive os pobres e os filhos de imigrantes recentes, considerados coletivamente culpados e de antemão condenados pelas discriminações de hoje e de ontem. O estatuto abole o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei e cria uma nova categoria de cidadãos, os afro-brasileiros, definidos de forma vaga e arbitrária como “as pessoas que se classificam como tais e/ou como negros, pretos, pardos ou definição análoga”, presumivelmente relegando os demais, de forma implícita, a uma categoria de branco-brasileiros.

Existe preconceito racial no Brasil? Sim. Mas existe também uma importante história de convivência e aceitação de diferenças raciais, religiosas e culturais, um grande patrimônio a ser preservado. Por que não progredir no caminho que vem sendo tentado, identificando situações específicas de discriminação e agindo contra elas, sem dividir a sociedade em “raças” estanques?

É certo que a “cor” tem um efeito negativo para os pretos na distribuição de oportunidades, mas a má qualidade da educação, as limitações do mercado de trabalho e a precariedade dos serviços de saúde, que afetam a todos, têm efeitos muito maiores. Valorizar a cultura, as histórias e as identidades dos diferentes grupos e etnias no país é um objetivo importante, mas é perfeitamente possível alcançá-lo sem dar as costas para a cultura universal, da qual queremos e precisamos participar.

A opção é simples: de um lado, uma sociedade em que o governo não se imiscua na identidade e na vida privada das pessoas, em que o princípio constitucional da igualdade seja mantido, e as políticas sociais lidem com as causas da pobreza e da desigualdade. De outro, uma sociedade em que a cidadania passa a comportar “graus”, em função da cor da pele de cada um, e a ser definida pelo movimento social, partido político ou burocrata de plantão. Um país com políticas sociais baseadas em critérios de culpa, expiação e reparação de pecados coletivos, com a substituição da antiga ideologia oficial de igualdade racial por outra, também abominável, de preconceito e perene conflito e discriminação entre raças antagônicas.

* Artigo publicado na Folha de SP, de 21 de abril
** Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ex-aluno da UFMG.


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