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Nº 1531 - Ano 32
18.05.2006

Outro caminho para a democracia*

Walter Mignolo**

vo Morales leu recentemente o “decreto supremo” em que foi anunciada a nacionalização do gás natural. O rumor já havia se espalhado pela Bolívia na véspera. O decreto começa considerando que “em lutas históricas, o povo conquistou e pagou com seu sangue o direito a devolver nossos recursos naturais e nossa riqueza em gás natural às mãos da nação para que sejam utilizados em benefício do país”.

Pesquisas indicam que Evo Morales tem 80% de aprovação, mas os Estados Unidos estão preocupados que o governo boliviano não esteja seguindo o caminho da democracia. George W. Bush tinha um índice de aprovação semelhante depois do 11 de Setembro, mas embora houvesse preocupações em outras partes do mundo o discurso oficial nos EUA relacionava a aprovação popular do governo à democracia, e não ao populismo.

Quais são as relações entre democracia e aprovação popular do mandato presidencial? A imprensa internacional registrou a substancial preocupação do setor industrial depois que Morales anunciou a nacionalização. O jornal The New York Times citou Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura, que disse: “Os governos da região vêem a energia como matéria-prima que podem usar para promover agendas populistas. Do ponto de vista político, é um tema poderoso para se manipular, mas do ponto de vista industrial pode causar verdadeiros danos”.

A declaração de Pires é uma meia-verdade. Ele supõe que a nacionalização do gás natural é apenas uma medida política e supõe que o setor industrial não tem interesses políticos. Além disso, sugere que a industrialização em si é boa para todos e que a nacionalização não trará benefícios econômicos para a maioria da população boliviana. Podemos conjeturar que Pires faria o possível para beneficiar o setor industrial e deixaria para outras instituições o combate à pobreza. A preocupação de Pires não é com o bem-estar de seres humanos, mas com o aumento da produtividade. O setor industrial e o governo dos países industrializados não consideram a possibilidade de que a nacionalização do gás natural na Bolívia possa ser uma forma de combater a pobreza.

Recuperar a autonomia que foi abolida pela privatização dos recursos naturais no governo de Gonzálo Sánchez de Losada talvez não seja um retorno ao populismo nacional latino-americano dos anos 70, mas um avanço para uma nova maneira de fazer política e economia (a maneira “descolonial”, como está sendo conceituada na Bolívia). Talvez seja a hora de começar a questionar a idéia de que a industrialização e a tecnologia abrem caminho para a democracia e que os projetos democráticos que diferem daqueles do setor privado são populismo autoritário.

As notícias e os relatórios oficiais regularmente informam que, enquanto a riqueza e a produtividade mundiais fazem aumentar a população, a pobreza também aumenta. Nós – leitores e público da mídia popular – somos diariamente convidados a pensar que só existe um caminho a seguir: aumentar a produtividade, difundir a tecnologia e permitir que as pessoas votem.

A democracia está no fim dessa estrada. Quando a população vota, por uma maioria surpreendente, num projeto (como os de Evo Morales, de Hugo Chávez ou do Hamas), isso não é seguir o caminho previsto, discute-se o risco para a democracia e considera-se o uso autoritário da força como medida para restabelecer a democracia. Isso nos faz pensar que democracia significa estar de acordo com o conceito defendido pelos que têm o controle do dinheiro e da autoridade. Esse perfil nos faz acreditar que, de fato, as pessoas que não acreditam no capitalismo e que sofrem as conseqüências da globalização estão erradas em seu sentimento e em sua luta para libertar-se dos desígnios imperiais globais.

O fortalecimento do Estado que estamos presenciando em todo o mundo (de Vladimir Putin, na Rússia, a Mahmoud Amhadinejad, no Irã; e de Hugo Chávez a Evo Morales) é uma reação ao perigo de um setor privado, como Joseph Stiglitz analisou no caso do colapso da União Soviética, e também do fim dos dez anos de privatização na Argentina sob Carlos Menem. Se o presidente Bush e Osama Bin Laden foram o retrato de uma luta de fundamentalismos, podemos concluir que hoje a Bolívia dá um exemplo da luta entre o perigo do setor privado que Adriano Pires menciona e o perigo do populismo nacional.

E nenhum dos dois oferece um caminho para o futuro. Mas, em última análise, Evo Morales talvez esteja fazendo algo diferente. Não um movimento para a restauração do populismo nacional na América Latina, como diz a vox populi, mas em uma direção diferente: a descolonização do Estado e a descolonização da economia. O que significa trabalhar na direção de uma teoria política que não está contida em John Locke e de uma economia política que está além de Adam Smith e Karl Marx.

*Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10 de maio de 2006
**Professor de Literatura e Antropologia Cultural da Universidade de Duke, EUA


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