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Nº 1532 - Ano 32
25.05.2006

A terceira margem da palavra

Maurício Guilherme Júnior

m travessão. Eis o singelo símbolo que emblematizou, na literatura brasileira, o início de nova era das letras nacionais. Em 1956, saía a primeira edição de Grande Sertão: Veredas, obra-prima do escritor mineiro João Guimarães Rosa, representativa – da primeira (“– Nonada”) à última palavra (Travessia) – de universo literário múltiplo e inovador. Nas descrições do ex-jagunço Riobaldo, narrador e protagonista do romance, estão algumas das principais características da escrita de Rosa: a multiplicidade de vozes e a inter-relação do oral com o escrito, do popular com o erudito, da intuição com a razão.

Pacto, xilogravura de Arlindo Daibert, reproduzida no livro Imagens do Grande Sertão, publicado pelas Editoras UFMG e UFJF

Autora do livro Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens (Senac/Ateliê, 2004), vencedor do prêmio Jabuti em 2005, a professora Marli Fantini, da Faculdade de Letras, foi uma das organizadoras de seminário internacional, realizado esta semana em Belo Horizonte, que discutiu a multifacetada escrita de Rosa. Nesta entrevista ao BOLETIM, a pesquisadora comenta características importantes da obra e da trajetória intelectual do grande escritor mineiro.

O que representa, no cenário literário brasileiro, a escrita de Guimarães Rosa?
Guimarães Rosa é um viajante e sua poética tem vocação plurilingüística e transnacional. O conhecimento de vários idiomas, o trânsito por inúmeras culturas, a diversidade de focos oriunda do olhar multifacetado do escritor – sertanejo, médico, intelectual, diplomata de carreira – são fatores decisivos na constituição de sua poética de “fronteiras”. Ao reconstituir o ambiente literário, a vida intelectual e profissional de Guimarães Rosa, percebemos que sua escrita contribuiu, no Brasil, com a ampliação do conceito de literatura e cultura. A obra de Rosa caracteriza-se pelo constante exercício de conjugar diferentes formas de conhecimento e formações discursivas de prestígio diferenciado: oral e escrito, popular e erudito, saber mitopoético e saber epistemológico, intuição e razão.

De que forma o ofício de escritor influencia o diplomata Guimarães Rosa?
Da vida e da obra rosiana, sobretudo em Grande sertão: veredas, aflora uma nova forma de habitar o mundo, bem como novos estatutos de trocas políticas e culturais. Trata-se de um universo real e imaginário que mais tarde se manifestará, como sabemos, na chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras do Itamarati, ocupada pelo embaixador Guimarães Rosa. É nesta função que ele negocia com o Paraguai as águas do Rio Paraná para a construção da Usina de Itaipu. Enquanto escritor, traçará cenários e espacialidades móveis, que primeiro desconstrói, para depois reterritorializar, como as fronteiras, os rios, as margens territoriais amplas e difusas do grande sertão. Conforme explica Riobaldo: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos”.

Em 2006, completam-se 50 anos da primeira edição do romance Grande sertão: veredas. O que torna o livro um marco da literatura nacional?
Grande sertão: veredas encena a entrevista concedida por Riobaldo, fazendeiro, quase barranqueiro, a um destinatário culto, que vem da “cidade” para conhecer de perto o universo sertanejo, sua cultura, seus mitos e, mais diretamente, a história de apogeu e decadência da jagunçagem. Sem a autoridade da narrativa épica ou da crônica oficial, o testemunho do ex-jagunço só terá sua aura assegurada caso entre em interlocução com uma voz legitimadora. É sobretudo nesse sentido que o romance se constrói como um grande diálogo, assumindo, contudo, a forma de monodiálogo ou “diálogo pela metade”. Ainda que haja uma entrevista, as únicas palavras que se ouvem são as do entrevistado, o que demonstra ser esta a hora e vez do sujeito subalterno da história.
Desde seu início, o romance assume estrutura inusitada. Ele se inicia com travessão e termina com “travessia”, palavra seguida pelo signo de infinito, de hibridismo, ou daquela serpente que morde a própria cauda. Tal signo sugere, dentre outras, a idéia de que o romance estará abrindo os elos de sua cadeia interativa para inserir novas redes e leitores no diabólico pacto ficcional por ele proposto. Seja no início, no meio ou no final de Grande sertão: veredas, a estrutura narrativa obriga cada passagem a interagir com uma infinda e recursiva cadeia hiper-textual, que não só remete a si mesma, como também à heterogeneidade conflitiva do “sertão-mundo”, onde tudo sempre atravessa e sempre recomeça.

Essa multiplicidade torna atemporal a obra de Rosa...

A capacidade de dar visibilidade a potencialidades não-realizadas, de agenciar novas redes de sentido e de conciliar experiência e discurso são atributos que fazem de Rosa um escritor de obras destinadas a se revelarem, em diferentes tempos e distintas formas de recepção, sempre novas, inesperadas, inéditas. A idéia de integrar, numa mesma rede múltipla e infinita, conhecimento e emoção, várias experiências e estilos, onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis, engendra a totalidade potencial dos grandes romances que emblematizam a literatura deste novo milênio.

Móvel e remanejável como um tabuleiro de xadrez, a cartografia de Guimarães Rosa agencia, dessa forma, infinitas combinações territoriais, cujo traçado aceita a intervenção simultânea de negociações e acaso. Hábil estrategista, Rosa sabe como reciclar os lugares fixos da geografia e da história, para criar múltiplas redes de sentido e de relações de intersubjetividade, que, por sua vez, se enredam nas combinações recursivas entre ficção e referenciais geo-políticos, como se lê numa passagem de Grande sertão: veredas: “Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda parte”.