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Nº 1536 - Ano 32
22.06.2006

As mulheres que só existem
na cabeça dos escritores

Livro da Editora UFMG investiga a construção de personagens femininas na literatura

Maurício Guilherme Silva Jr.

personagem Amália, do romance Encarnação, publicado em 1.893 por José de Alencar, busca, incessantemente, tornar-se outra. Dos cabelos à própria personalidade, luta para se parecer, um pouco mais a cada dia, com a figura da falecida Julieta, primeira mulher de seu marido, o viúvo Hermano. Mais do que o recurso escolhido pela protagonista para se aproximar do atormentado companheiro, a atitude revela a procura do próprio autor pela representação, no corpus da obra literária, das complexas significações do feminino.

Felipe Zig

Ruth Silviano Brandão: ideal complexo e indefinido

Compreender a construção – masculina – de personagens femininas é o argumento central do livro A mulher ao pé da letra, escrito pela professora Ruth Silviano Brandão, da Faculdade de Letras (Fale). Na obra, cuja segunda edição acaba de ser lançada pela Editora UFMG – a primeira data de 1989 – a pesquisadora analisa as características e o comportamento de diversas mulheres ficcionais à luz da Psicanálise e das teorias literárias.
“A personagem é criada pelo autor. Portanto, não existe ‘a mulher’. O que há são invenções. As fantasias psíquicas do universo feminino são representadas pela literatura”, comenta a professora. Em sua pesquisa, Ruth Silviano Brandão investiga como os homens inventam as mulheres em uma série de obras. Sua análise se debruça sobre heroínas como Olímpia, de O homem da areia, de Hoffman; Amália, de Encarnação (José de Alencar); Magdá, de O homem (Aluízio de Azevedo), ou Nina, de Crônica da casa assassinada (Lúcio Cardoso).

Nessas obras, a incompletude é a marca registrada das mulheres, o que significa que até a produção literária não consegue superar a armadilha lançada pela própria realidade. Na literatura a idéia de “feminino” também é complexa e pouco definida. “O que percebo, ao analisar as personagens, é o narcisismo masculino. Os autores criam mulheres com características baseadas na expectativa que se tem da heroína”, comenta a pesquisadora.

As mulheres que os escritores idealizam são mães, esposas ou filhas. Algumas revelam-se assexuadas e, em certos casos, projetam a virgem imaculada. Em contrapartida, aquelas que não se encaixam no sistema moldado pela moralidade social ganham os papéis de loucas, marginais e prostitutas.

Ideal de feminino
Em 1993, o livro recebeu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria Ensaio. À época, as discussões psicanalíticas e literárias de Ruth Silviano Brandão não foram recebidas com bons olhos pela “ala feminista” da crítica literária. A reação à obra ilustra a tensão própria de um de seus principais debates: a complexidade do ideal de “feminino” que, de certa forma, representaria o oposto “do poder, da busca fálica, do sentido de totalização”, diz Ruth Silviano Brandão. Tais personagens e idéias, segundo ela, acabam por aparecer nos textos de literatura, também sob o signo “do que não se sabe, do que foge aos paradigmas fálicos”.

Lúcio Cardoso, em sua Crônica da casa assassinada, por exemplo, personifica essa complexidade na figura de Nina. A personagem é construída pelo discurso de todos os personagens da obra. Contudo, nunca se define nem se torna “palpável”, acessível. “Todos perguntam: ‘Quem é Nina?’ ‘Que mulher é essa?’ Eis a representação do paradigma do insabido”, diz Ruth Brandão.

Certas personagens femininas, aliás, ganham estatura ao longo do tempo. É o caso de Capitu, magistral criação de Machado de Assis. Diante da clássica dúvida sobre sua traição a Bentinho, o que resta é o confronto entre o senso comum (interessado em procurar respostas para uma questão irrespondível) e a essência da complexa personagem literária que, na verdade, reflete o discurso do próprio Bentinho. “É um descompasso sem saída. Não há simetria entre os sexos”, completa a professora.

 

Livro: Mulher ao pé da letra –
A personagem feminina na literatura

Autora: Ruth Silviano Brandão
Publicação: Editora UFMG
Vendas: nas livrarias da Editora UFMG no campus Pampulha e no Conservatório UFMG (Avenida Afonso Pena, 1.534)