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Nº 1553 - Ano 33
23.10.2006

Investimento (e visão)
de curto, médio e longo prazos *

Jorge Werthein**


ducação foi palavra de ordem no discurso dos candidatos que dis- putaram essas eleições. Mas, via de regra, foi de forma abrangente que a educação permeou a fala dos que buscavam votos e credibilidade. Há, contudo, uma prioridade da formação escolar que, até por força das circunstâncias, não recebeu a devida ênfase e o nível de detalhamento necessário: o ensino de ciências, investimento que pressupõe visão de curto, médio e, principalmente, longo prazos.

Um ensino de ciências de qualidade possui efeitos multidimensionais. Além de ajudar a elevar o nível de todo o currículo escolar, por sua natureza metodológica, favorece o itinerário do indivíduo, tanto em seu tempo escolar quanto depois de formado, na medida em que ele passa a dispor de um instrumental que o ensino baseado exclusivamente nos livros e conteúdos não proporciona.

Além disso, o público em geral também deve ser informado quanto ao potencial do papel da ciência, bem como da capacidade de realização de pesquisas nacionais voltadas para a solução dos problemas brasileiros que impedem o desenvolvimento.

Essa consciência pública pode incentivar o reconhecimento dos esforços da pesquisa científica local. José Eli da Veiga, professor de economia da Universidade de São Paulo (USP), defendeu em artigo recente a idéia de uma melhor distribuição dos investimentos em educação científica. Segundo ele, as instituições superiores concentram grande parte dos recursos disponíveis, apesar de já existirem centros de educação e pesquisa eficazes.

A professora Leila Oda, presidente da Associação Nacional de Biossegurança (Anbio), por sua vez, ressalta que somente a qualificação dos professores e a popularização das ciências, juntas, podem converter o país em um centro realmente competitivo em biotecnologia. Em muitos casos, o analfabetismo científico da população põe por terra todo o investimento feito no setor de pesquisa, por causa de incompreensões sobre as vantagens no uso de novas tecnologias. Ela cita dois exemplos de projetos abortados devido a campanhas de desinformação. No primeiro, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) deixou de pôr no mercado um mamão resistente a vírus, com menos características alergênicas. O segundo refere-se ao caso da cana-de-açúcar resistente a herbicidas, que exigiria menos defensivos, reduzindo a poluição ambiental. Sua produção, porém, foi interrompida devido a protestos.

Nos últimos anos, os sistemas de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) da maioria dos países latino-americanos não conseguiram acelerar sua dinâmica de modo a acompanhar o crescimento de uma economia baseada no conhecimento. Nesses países, os gastos e as fontes de financiamento para pesquisa e desenvolvimento são muito heterogêneos.

Dados da Rede Internacional de Ciência e Tecnologia, coletados no ano 2000, demonstram um círculo vicioso entre a atividade econômica e o investimento em pesquisa, bem como o impacto das economias de escala em países de menor atividade econômica que executam ações marginais de pesquisa e desenvolvimento. Nos países de maior desenvolvimento econômico, como Estados Unidos e Canadá, o setor produtivo responde pela maior parte dos gastos de pesquisa e desenvolvimento.

A situação é bem diferente em países latino-americanos analisados pela Rede. Neles, a participação do setor privado é bem menor. Em relação à capacidade de inovação e invenção, é interessante verificar que, entre os países da América Latina, o Brasil ocupa posição intermediária, registrando crescimento tímido no número de patentes solicitadas para cada grupo de 100 mil habitantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, o percentual ultrapassa os 60% e segue em crescimento vertiginoso.

Quaisquer que sejam as explicações para esse quadro, é inegável que apenas um bom e atrativo ensino de ciências para todas as crianças pode despertar novos talentos para as carreiras científicas.

Atualmente, as ciências não apenas parecem difíceis para os estudantes, como também demonstram ter pouca ou nenhuma ligação com os problemas reais.

Cabe destacar ainda que o conhecimento científico e as novas tecnologias são fundamentais para que a população possa se posicionar frente a processos e inovações sobre os quais é preciso ter opinião, a fim de legitimá-los. É o caso do uso dos alimentos geneticamente modificados, da clonagem biológica ou do uso das células-tronco.

Nesse sentido, o domínio do conhecimento científico faz parte do exercício da cidadania em sistemas democráticos. Costuma-se dizer que, no mundo atual, o capital mais importante de um país é o conhecimento. Mas ele depende da formação de pessoas capazes de produzi-lo e manejá-lo.

A inclusão das ciências desde o ensino fundamental deve ser associada a uma política de formação de docentes, de modo que eles se sintam seguros e possam propiciar aos alunos aprendizado significativo. Não existem fantasmas no ensino de ciências. É preciso apenas transmitir conhecimentos muitas vezes elementares, que possam gerar nas crianças interesse genuíno pela experimentação. Os alunos entusiasmam-se, querem praticar, desenvolvendo assim o trabalho em equipe.

No Brasil, isso já ocorre em algumas escolas da rede privada, mas não se pode manter uma situação em que esse tipo de formação e conhecimento se restrinja a um pequeno número de crianças e jovens, sob pena de se continuar a gerar e reproduzir desigualdades.

Assim, em um país com as características do Brasil, com numeroso contingente de crianças e jovens em idade escolar, não é exagero dizer que o conhecimento é o bem mais valioso que se tem à disposição, o qual pode se converter em vantagem competitiva se esse potencial for bem aproveitado por meio da educação de qualidade.

*Artigo publicado no jornal Valor Econômico, no dia 2 de outubro
** Doutor em Educação pela Universidade de Stanford (EUA) e assessor especial da Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI)



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