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Nº 1569 - Ano 33
19.3.2007

ECA: cumprir antes de modificar*

Newton Lima Neto** e Aguinaldo Soares Lima***

C

omo seria dizer que um remédio não é bom para uma doença ou, ainda, que é necessário dar uma dose maior para que ele produza o seu efeito antes mesmo que tenha sido administrado ao doente? Esta é a imagem que deveria vir às nossas cabeças quando se fala em mudança do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ou em redução da idade penal.

Nem bem colocamos em prática os princípios contidos nessa lei, de 1990, nem experimentamos executar suas proposições pensadas e discutidas por quem atua na área e somos interpelados por aqueles que apenas a conhecem pelo “ouvi dizer” e, sob clima de comoção, querem propor mudanças ou estabelecer critérios mais duros na sua aplicação.

Solidarizar-se com a tragédia e a barbárie vivida pelo pequeno João Hélio e sua família é o mínimo que se espera de um cidadão consciente. Indignação é, por certo, atitude ainda mais adequada. O que fazer, porém, diante de fatos como esse exige de nós uma reflexão séria e a busca de solução consistente. Para continuar na comparação acima, não é a receita que cura o paciente, mas a administração regular do medicamento.

O adolescente é impulsivo, imprevisível, ousado. Isso nós já conhecemos e sabemos que faz parte das suas qualidades e também está presente nos seus erros. Por não acreditar no impossível, ele é capaz de fazer malabarismos impensáveis sobre uma bicicleta, um skate ou um par de patins.

Bem orientado, é capaz de canalizar tais atributos para grandes realizações. O que vemos muitas vezes, porém, são oportunidades negadas e uma contínua exclusão. Excluído da família, da escola, do lazer, da profissionalização, do trabalho e, não raro, até da sociedade pelo seu modo irreverente de se vestir e de andar.

Negamos as oportunidades, os deixamos à mercê do consumismo e da mídia que banaliza a violência e os valores morais e, quando caminham em direção ao delito, mais uma vez o que nos ocorre é a violação do direito.
O ECA contempla a situação do jovem que errou e, pedagogicamente, propõe um itinerário que o ajude a se reorientar de forma positiva. Serviços comunitários, liberdade assistida e semiliberdade são oportunidades que devem levá-lo a reletir sobre sua conduta antes que tome gosto pelos enganos do mundo da criminalidade.

Salvo raras exceções, programas de medidas socioeducativas inexistem ou são de péssima qualidade. Não investimos na prevenção e queremos relegar a responsabilidade à internação.

Chame-se por qualquer nome (Degase, Febem, Caje etc.) esses centros que se regem pelas mesmas leis dos cárceres e presídios para adultos. Não será o tempo que os jovens permanecem neles que irá tirá-los do mundo da criminalidade. Serão as oportunidades oferecidas e o que fizermos para que eles não precisem chegar lá.

São Carlos, no interior do Estado de São Paulo, vem apostando nessa fórmula. Em 2001, criou o Núcleo de Atendimento Integrado (NAI) e tirou do papel o Art. 88. inciso V, do ECA. Começou a trabalhar na integração entre Estado e Munícipio, Judiciário, Segurança Pública, Ministério Público, assistência social, saúde, educação, ONGs e família. Uma ação ágil na intervenção junto ao adolescente de ato infracional, que se inicia a partir de pequenos desvios, que têm como centro da sua atenção a pessoa do adolescente, e não o delito praticado, tem trazido bons resultados.

A cidade, que em 1998 teve 15 homicídios praticados por adolescentes, viu cair este índice para, no máxino, dois por ano entre 2001 e 2005 e nenhum em 2006. O índice de reincidência de São Carlos fica em torno de 4%, frente à média de 30% quando apenas adotamos procedimentos convencionais de internação. Além disso, reduziu em 90% o número de internos na Febem quando comparado a municípios de igual porte.

A experiência, que busca sempre novos parceiros para melhorar ainda mais, é exemplo concreto de que o ECA precisa ser aplicado e não modificado. Para multiplicá-la pelo país, basta vontade política de governantes, pois recursos financeiros não faltam – o interno da Febem, por exemplo, custa quatro a cinco vezes mais que um jovem atendido pelo NAI. Além do mais, nenhum país resolveu o problema pelo endurecimento das leis. Reduzir a idade penal é ilusório, inócuo e contraproducente. Investir em educação, oportunidades e atenção é mais barato, eficiente e humano.

*Artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 26 de fevereiro
** Prefeito de São Carlos, foi reitor da Universidade Federal de São Carlos
entre 1992 e 1996
*** Padre salesiano, preside o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de São Carlos a Universidade Federal de São Carlos
entre 1992 e 1996

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