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Nº 1587 - Ano 34
23.10.2007

E o Nobel foi para... o camundongo!*

Lygia da Veiga Pereira**

O Prêmio Nobel de Medicina deste ano foi dado a três cientistas que revolucionaram nossa forma de fazer pesquisa em genética humana, trabalhando apenas com camundongos. Na década de 1980, estes pesquisadores desenvolveram métodos para alterar os genes dessa cobaia de modo a se poder criar camundongos com doenças genéticas humanas.

Não se trata de uma forma sofisticada de sadismo, mas de uma ferramenta muito poderosa para entendermos os mecanismos por trás de diferentes doenças e podermos desenvolver e testar novas terapias para as mesmas. No final dos anos 1970, Oliver Smith e Mario Capecchi estudavam formas de alterar genes específicos em células humanas.

Uma aplicação dessa pesquisa seria o conserto de genes defeituosos em pacientes com doenças genéticas. Eles descobriram como fazer modificações específicas no genoma de células no laboratório, mas estas modificações aconteciam com
freqüência baixa demais para aplicação clínica. No entanto, a técnica poderia ser utilizada para criar camundongos com mutações causadoras de doenças genéticas.

Neste ponto, entrou a contribuição fundamental de Martin Evans, que na época estudava um tipo especial de células do embrião de camundongo, capazes de se transformar em qualquer tecido do animal adulto. Isto soa familiar? Sim, Sir Evans foi o grande descobridor das hoje famosas células-tronco embrionárias. Ele conseguiu pela primeira vez retirá-las dos embriões de camundongo e multiplicá-las no laboratório sem que perdessem a sua formidável habilidade de dar origem a qualquer tecido do animal. Foi nestas células que Smith e Capecchi fizeram as alterações em genes escolhidos. E quando as reintroduziram em embriões de camundongo, as células alteradas eventualmente deram origem a animais com mutações naqueles genes — os chamados camundongos knockout (com um gene “nocauteado”).

Hoje existem camundongos knockout para mais de 500 doenças. Eles são utilizados para compreender cada uma delas, desenvolver e testar novas terapias (...)
Esses animais mutantes nos ajudarão a entender melhor a biologia do camundongo, e, logo, a do ser humano também.

Comecei meu doutorado nos EUA em 1989, mesmo ano em que foi anunciado o primeiro camundongo knockout, um modelo animal para a doença de Lesh-Nyham, enfermidade neurológica rara que, entre outros sintomas, gera crises de autoflagelação nas crianças afetadas. Desde então, esta técnica foi incorporada por grupos de pesquisa, que a utilizam para gerar animais mutantes que auxiliem em seus trabalhos. Hoje existem camundongos knockout para mais de 500 doenças. Eles são utilizados para compreender melhor cada uma delas, desenvolver e testar novas terapias.

Além disso, um esforço internacional em andamento pretende mutar cada um dos 20 mil genes do genoma do camundongo, criando uma coleção de animais knockout, cada um com um gene diferente alterado. Esses animais mutantes nos ajudarão a entender melhor a biologia do camundongo, e, logo, a do ser humano também.

E as células-tronco embrionárias? Sir Martin não poderia imaginar o quão famosas elas se tornariam. As células-tronco embrionárias se tornaram a grande promessa terapêutica do século 21. No Brasil, elas ganharam notoriedade durante o debate sobre o uso de embriões humanos para pesquisa, resolvido com a aprovação, em 2005, da Lei de Biossegurança, que finalmente permitiu o início dos trabalhos com células-tronco embrionárias humanas.

De volta ao Brasil em 1994, com o financiamento da Fapesp e do CNPq, montei na USP um laboratório para criar camundongos knockout. Além da verba, tive o privilégio de conseguir reunir uma equipe extremamente competente e dedicada. Em 1999 estabelecemos as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias de camundongo no país e, em 2001, os primeiros camundongos knockout completamente made in Brazil — modelos animais para a síndrome de Marfan, doença que pode levar à morte por ruptura da aorta. Em modelos como os nossos foi desenvolvida nova terapia para esta síndrome que agora está sendo testada.

Por que demoramos 12 anos para estabelecer essas técnicas no Brasil e estamos correndo atrás de outros sete anos de atraso das pesquisas com células-tronco embrionárias humanas? Não sei, talvez por falta de uma política clara de desenvolvimento científico que incentive novas linhas de pesquisa. Sei que o que não falta no país são pesquisadores competentes e entusiasmados. Precisamos que o governo se entusiasme também com a ciência brasileira, e que este entusiasmo se reflita em financiamento consistente à pesquisa e em leis de importação que facilitem o trabalho árduo dos nossos cientistas.

O impacto das pesquisas vencedoras do Prêmio Nobel de Medicina deste ano foi muito além das descobertas. Abriu novos caminhos de pesquisa biomédica, habilitou milhares de pesquisadores a desvendar os mistérios das funções dos nossos genes em modelos animais e, inadvertidamente, iniciou a fascinante área de terapia com células-tronco. Palmas para eles!

*Artigo publicado no jornal O Globo, de 16/10
**Chefe do Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências, da USP

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