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Nº 1597 - Ano 34
18.02.2008

Você me conhece?

Contribuições étnicas embasam estudo sobre carnaval e brasilidade desenvolvido por pesquisadores da Fafich

Carnaval
Entrudo na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, em 1884, retratado por Angelo Agostini

Ana Maria Vieira

Há pouco mais de 100 anos, a pergunta do título poderia levar o folião desavisado ao xadrez. Disseminada entre a população que brincava o carnaval pelas ruas do Rio de Janeiro, ela se fazia ouvir como espécie de senha a partir da qual mascarados, com voz de falsete e em alto e bom som, vingavam-se de seus desafetos, ridicularizando-os, revelando seus segredos ou ofendendo-os. A transgressão, de uma época em que o Carnaval era conhecido como entrudo, levava às ruas multidões dispostas a destruir cartolas dos bem-vestidos, jogar água e farinha nos passantes e ver os cortejos de negros que se exibiam com animais vivos, como cobras e lagartos, ao ritmo de danças ritualísticas e instrumentos de percussão então considerados exóticos.

Os festejos populares incluíam cenas que, além de combatidas pelo poder policial, eram radicalmente distintas das ambientadas nos salões freqüentados pelas elites preocupadas em forjar a imagem de um Brasil civilizado. Mas onde se encontra aquele Carnaval denominado selvagem e chulo, que abrigava tantas diferenças sociais e culturais?

Para alívio da imprensa e das autoridades da época, essa modalidade deixou de existir após décadas de perseguição, ainda que resquícios sobrevivam em festejos espalhados pelo Brasil. Conforme demonstram obras de estudiosos como a historiadora Maria Clementina Pereira Cunha, da Unicamp, a trajetória de tais transformações remete tanto a capítulos especiais sobre o caráter desse evento quanto à própria formação do país.

Mas o fato de ser “uma festa com poder muito forte de expressar certas dimensões do tempo e das relações sociais”, na observação de Maria Clementina, expressa no livro Ecos da folia, provoca o surgimento de novos olhares a esmiuçar o tema. Em especial, quando se trata de compreender a constituição da modalidade da festa hoje predominante e o papel da cultura afro-brasileira nesse processo.

“O discurso e a imagem de conciliação relativos ao Carnaval foram construídos para transformá-lo em símbolo da nacionalidade brasileira, sobretudo no Estado Novo”, diz Ana Lúcia Modesto, do departamento de Sociologia e Antropologia da Fafich. Dedicada, desde 2006, a uma pesquisa bibliográfica sobre Carnaval e etnia, ela pretende, por meio de entrevistas com repórteres e consultas a arquivos de jornais, trazer a público o outro lado da história, como a que se desenrola entre 1910 e o Estado Novo.

A definição do período decorre de análise de caso, que ela vai empreender com o pesquisador Carlos Guedes, seu colega de departamento, sobre a relevância da cobertura do Jornal do Brasil no processo de mudança do carnaval – e, na seqüência, do Estado na formulação de uma visão de país associada a suas raízes negras. Segundo a professora, o jornal carioca foi responsável pela promoção do primeiro julgamento dos desfiles carnavalescos e da premiação aos blocos, em 1912. “Devo estudar como a publicação fortaleceu o Carnaval negro, por meio dos prêmios para grupos ainda excluídos, e o período posterior, quando essa promoção passa ao controle do Estado”, salienta a pesquisadora.

À época, os desfiles introduzidos pelos negros saíam da Praça Onze, no Rio de Janeiro. O local também concentrava terreiros de umbanda. “Como observa Nina Rodrigues {médico e antropólogo maranhense, que viveu na segunda metade do século 19 e no início do século 20}, o Carnaval que se estrutura então é fruto do relaxamento do controle pelos brancos. Os negros se aproveitam e levam os símbolos reprimidos do candomblé para as ruas, transformando-as em terreiros. Assim, expunham sua memória crítica da escravidão”, analisa Ana Lúcia.

É nos terreiros que surge o samba, junto a fantasias inspiradas pelas práticas animistas dos índios e outras advindas do totemismo africano.“Com a adesão do público a essa forma de Carnaval, ocorre aí a resposta da cultura afro, mais afinada com a psicanálise que destacava o papel de Eros na formação da civilização, em clara oposição ao positivismo, que a elite queria impor”, sintetiza a professora.
A primeira versão do estudo deverá ser finalizada em julho.