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Nº 1601 - Ano 34
17.03.2008

Processos de longa duração e a prática científica*

Glória Maria Vargas**

A capacidade humana de exercer modificações em grande escala no planeta e na sua atmosfera vem sendo indicada por pesquisas recentes. Nos últimos 10 mil anos, o homem tem influenciado de forma crescente a direção e intensidade dos processos que sustentam a vida, basicamente pelo seu potencial cognitivo que lhe proporciona talentos técnicos, atributos com os quais cria e manipula meios e procedimentos para promover determinados resultados, e pela sua capacidade de transformação do entorno. Em recente relatório, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão das Nações Unidas, indica as dimensões dessa intervenção.

O reconhecimento dos efeitos da ação humana em grande escala no planeta tem levado os cientistas a sugerir que vivemos hoje numa nova era geológica nomeada por eles de Antropoceno, alusão à centralidade do homem como agente de transformação. Nesta perspectiva, teríamos que reconhecer que as nossas características e talentos como espécie nos levaram a ser, também, agentes significativos de mudanças geológicas e atmosféricas.

A constatação da complexidade, interatividade e capacidade de acumulação desses processos tem sido tal que transcende os espaços estritamente científicos, obrigando-nos também a fazer considerações sociais e políticas. E há uma característica em destaque: sua análise reivindica um olhar de longo prazo. Ele se faz necessário face à constatação de que os processos perduram e de que suas conseqüências podem ser cumulativas.

Isto desafia a própria ciência, dentre outras coisas porque a obriga a combinar o conhecimento sobre diferentes períodos históricos para reconstruir o que pode ter ocorrido nos diferentes estágios e suas fases de transição e a fazer extrapolações para compreender as tendências futuras. Como conseqüência disso, faz-se necessário trabalhar com uma visão clara que conserve as prioridades científicas para não se perder nos meandros das especificidades das diferentes épocas.

Os cientistas devem compreender eventos que vêm se consolidando em longos períodos e que são produto de uma variedade de fenômenos, também sociais. Devem integrar estes eventos com as dinâmicas de curta duração e tentar compreender suas conseqüências. A
consciência desses escopos temporais permite detectar os efeitos com maior precisão.

Visto apenas da perspectiva das ciências sociais, o desafio é talvez maior. Trata-se de antecipar possíveis efeitos derivados desses processos, em âmbitos tão diversos e delicados como o da seguridade dos Estados, o da capacidade de resposta dos diferentes contextos sociais e o da construção de políticas públicas informadas e eficientes. Trata-se, também, de prospectar as escolhas a serem realizadas pela sociedade em diversos âmbitos, dentre eles o produtivo.

Estamos, portanto, diante da necessidade de depuração da nossa capacidade científica de elucidar o que não se vê ou percebe diretamente, com vistas à compreensão do que de fato vemos ou percebemos, e de prospectar isso para o futuro.

Esse é um tipo de racionalidade que transcende a forma usual de coordenação de meios para obtenção de fins, típica da racionalidade pragmática, fundada no imediato e nas respostas de curto prazo. Exige voltar a valorizar aspectos não poucas vezes esquecidos e ofuscados pelas considerações prático-instrumentais que enfatizam prioritariamente resultados e conquistas no presente, descuidando das conseqüências.
O que se evidencia é a necessidade de consolidação de abordagens realizadas sob a ótica de diferentes disciplinas científicas simultaneamente, e a concomitante reavaliação de suas metodologias e técnicas de pesquisa numa escala de tempo maior.

Trata-se de explicar, transcendendo uma abordagem mecanicista, as correlações causais e funcionais da ação humana e a dinâmica dos processos naturais numa temporalidade que permita enxergar seus efeitos duráveis. A marcha desses processos não pode ser representada apenas como uma sucessão de causas e efeitos, de conexões empíricas que dão unidade às fases sucessivas, principalmente porque combina processos de naturezas, ordens de magnitude e escalas de tempo diferentes.
A capacidade de “tecer em conjunto” conceitos e proposições científicas variadas e geralmente independentes de diversas ciências deverá permitir a percepção de complexas relações entre a ação humana e os processos da natureza num escopo de tempo amplo.

Isto implica conservar a capacidade de predição das ciências naturais combinada com a capacidade da história de inferir acontecimentos pretéritos para preencher os vazios do passado e prospectá-los no futuro. Esta última proporciona os elementos para compreender os propósitos, as
perspectivas, as visões de realidade e os modos de ver e de agir do homem, em diferentes épocas, bem como as mudanças dos sistemas naturais no percurso do tempo na escala dos processos de longa duração.

A contribuição da história permite vislumbrar, com clareza, uma questão básica: a ação humana é produto do comportamento intencional e, portanto, os padrões de civilização até hoje têm sido criados por opção do próprio homem. Permite visualizar também as conseqüências dessas escolhas nas estruturas naturais de diferentes épocas, o que talvez nos obrigue a revisar categorias básicas como “desenvolvimento”, “crescimento”, “bem-estar”, “qualidade de vida” etc.

Nesta perspectiva, vislumbram-se possíveis contribuições de novas práticas intelectuais que transcendam as fronteiras disciplinares e incorporem a escala temporal dos processos de longa duração, e, quem sabe, obriguem-nos a ampliar as premissas sobre as quais temos construído o trabalho científico.

O estudo e a compreensão dos processos de longa duração terão um papel relevante não apenas na evolução das diferentes disciplinas e conhecimentos envolvidos, mas também no aprimoramento dos procedimentos de pesquisa.

*Artigo publicado no boletim JC e-mail em 14 de fevereiro
** Pesquisadora do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB)

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