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Nº 1601 - Ano 34
17.03.2008

Terra à vista

Editora UFMG lança obra sobre história e ciência da produção cartográfica da América Portuguesa

Ana Maria Vieira

A um canto de um açougue italiano do século 19, pilhas de papel aguardavam o momento para envolver as carnes adquiridas pelos clientes. A qualidade do papel, no entanto, era invulgar, pois o conjunto abrigava documentos em pergaminho, dentre os quais, soube-se mais tarde, o Planisfério de Cantino. Resgatado por um connaisseur, o mapa encontra-se hoje em Módena, na Itália. Para o Brasil, a história, sem trocadilhos, possui sabor especial, uma vez que a peça é considerada a mais antiga representação cartográfica existente sobre o país.

Produzido em 1500, conforme relatos correntes, o Planisfério é, na realidade, fruto de modalidade de espionagem e suborno do tempo das grandes navegações. Ele teria sido copiado de peça original portuguesa, em ação protagonizada por Alberto Cantino, enviado a Lisboa com esse fim pelo Duque de Ferrara.

Pouco difundida entre o público brasileiro, a obra pode ser apreciada agora junto com outros 257 documentos cartográficos reunidos em livro da Editora UFMG, organizado pelo professor Antônio Gilberto da Costa, do Instituto de Geociências. Denominado Roteiro prático de cartografia: da América Portuguesa ao Brasil Império, o estudo traz contribuições dos pesquisadores Max Justo Guedes, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, Márcia Maria Duarte Santos, além do próprio organizador. Em circulação no país desde dezembro de 2007, o Roteiro será lançado esta semana em Portugal e já despertou o interesse da Universidade de Salamanca, envolvida em projeto de estudos da relação Brasil-Espanha.

Lacuna

A obra integra série destinada a preencher lacuna na bibliografia nacional sobre o tema cartografia histórica. “Nossa produção é quase inexistente nessa área”, avalia Antônio Gilberto da Costa. No esforço de suprir a deficiência, já foram publicados outros três livros: Cartografia das Minas Gerais: da capitania à província; Cartografia da conquista do território das Minas e Os caminhos do ouro e a Estrada Real. O próximo projeto da série deverá compreender o período republicano.

“Não sou historiador, mas creio que faltava uma bibliografia que mostrasse a trajetória da conformação do território brasileiro, além das técnicas utilizadas em diferentes períodos para o levantamento de dados e a confecção das cartas”, diz o professor. O trabalho é, nesse sentido, uma autêntica viagem pela história do país através dos mapas e da própria formação da ciência cartográfica.

Em linguagem acessível, Roteiro prático entrelaça informações relativas a experiências estéticas ocidentais – visíveis nas iluminuras e imagens representadas em diversos estilos artísticos e impressas nos mapas – e sobre a padronização de grandezas como latitudes, longitudes, tempo, distâncias, além das escalas com seus símbolos e sinais. Relata, ainda, a passagem da cosmografia prática portuguesa do século 16 ao esforço dos lusitanos em instituir escolas e observatórios astronômicos nos Oitocentos, preocupados em assegurar fundamentos científicos para cartas – especialmente as que tratassem de fronteiras brasileiras, devido à então recente descoberta do ouro na província mineira.

Analogamente, assiste-se, no período, à migração do saber do antigo cosmógrafo português desenhador de mapas para os sábios matemáticos e astrônomos jesuítas, até consolidar-se a função do engenheiro militar como perito desse ramo do conhecimento. A aparição desses protagonistas reflete transformações na ação política das autoridades coloniais que sai enfim das fronteiras e avança pelo interior dos territórios. Conhecer, registrar e demonstrar cientificamente informações sobre o espaço terrestre é a nova ordem entre as nações que, para defenderem seus domínios coloniais, passaram a pôr a diplomacia à frente das guerras.

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Planisfério de Cantino: primeiro registro cartográfico do território brasileiro