Busca no site da UFMG

Nº 1607 - Ano 34
25.04.2008

Circuitos da dor

ICB abriga investigação pioneira sobre inibidores de estruturas relacionadas a dores intratáveis

Ana Maria Vieira

Paulo Cerqueira
Paulo
Paulo Sérgio Lacerda Beirão: inibição seletiva dos canais de cálcio

Como proporcionar alívio a alguém que sente dor em um membro que não mais possui? Resultado de neuroma, formação patológica que ocorre na terminação nervosa seccionada, essa sensibilidade aparentemente improvável se enquadra em grupo específico de dores intratáveis, ao lado de outras provocadas pelo câncer e por neuropatias decorrentes de Aids e diabetes. São poucos os recursos existentes para combatê-las que não impliquem efeitos colaterais danosos ao organismo humano. Há cerca de três anos, porém, a literatura científica começou a apontar nova alternativa para confrontar o problema, com a identificação de canais de sódio envolvidos especificamente com a sensibilidade.

“Temos evidências, ainda preliminares, de haver, em uma determinada planta e em veneno de aranha, substâncias com potencial analgésico que inibem esses canais”, diz Paulo Sérgio Lacerda Beirão, professor do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, que lidera o único grupo no país a investigar canais de sódio especializados na função da dor. Atualmente, suas pesquisas, realizadas no Laboratório de Membranas Excitáveis, focam duas direções: mapear o funcionamento no nível molecular dessas estruturas e analisar alcalóides de planta, além de proteínas de veneno animal capazes de bloquear seletivamente canais, em especial os que estiverem relacionados a dores neuropáticas.

Formando poros nas membranas celulares e com dimensão menor que um centésimo de micrômetro – dez bilionésimos do metro –, os canais iônicos são responsáveis por gerar e conduzir o sinal nervoso, por meio do qual as células se comunicam, transmitindo sensações e ordem para movimentos diversos. Há diversos tipos deles. “Os mais importantes são os de sódio, potássio e cálcio, pois encontram-se mais envolvidos na geração e condução do sinal nervoso”, salienta Beirão. Os de sódio estão presentes no sistema nervoso e nos músculos liso, esquelético e cardíaco. Sem eles é impossível haver, por exemplo, contração do músculo, e a própria função cardíaca fica comprometida.

Apesar do desconhecimento generalizado sobre seus mecanismos, a função vital dessas estruturas já é bastante disseminada, haja vista que, quando são inibidas sistemicamente, ocorre paralisia da função nervosa do organismo e, conseqüentemente, a morte. O fato pode ser ilustrado em acidentes culinários no Japão, a partir de ingestão da tetrodotoxina existente em peixe apreciado entre a população. O veneno impede o funcionamento do canal de sódio, produzindo parada do sistema respiratório.

Nova geração

Algumas das vantagens em investigar fármacos que bloqueiam canais iônicos decorrem de sua eficiência em reduzir dores crônicas e de não produzir dependência física entre usuários, como ocorre com a morfina. Conforme assinala Paulo Sérgio Beirão, em projeto encaminhado ao CNPq e à Fapemig, toxina com esse potencial foi encontrada há apenas poucos anos, “quase por acaso”. Atualmente, uma modalidade dela, extraída do molusco marinho Conus, já é comercializada nos Estados Unidos sob o nome de Prialt. Apresenta, no entanto, efeitos colaterais indesejáveis – alucinações e outros distúrbios psiquiátricos –, que fazem muitos pacientes abandonarem o tratamento. Além disso, a aplicação feita no canal raquideano exige pessoal capacitado. Tais problemas, contudo, transformaram-se em desafios que estimularam a entrada do grupo da UFMG em cena.

“Até pouco tempo, pensava-se que os canais de sódio eram homogêneos, isto é, tinham praticamente as mesmas propriedades e, caso um deles fosse bloqueado, todos os outros também o seriam, produzindo fato incompatível com a vida”, diz o professor. Em decorrência de estudos que remontam à década de 1990, que seqüenciaram geneticamente e identificaram diversos tipos de canais de sódio, sabe-se hoje que eles possuem especializações, sendo possível inibir alguns seletivamente sem causar morte. O bloqueio é feito por substâncias que atuam em estruturas comuns a vários tipos de canais ou que lhe são específicas.

Alguns canais, como observa Beirão, foram descritos a partir dessa especificidade da atuação de toxinas. Ele exemplifica com o caso do Prialt, que age em um subtipo de canal de cálcio (Cav 2.2). Sabe-se hoje que essa estrutura está envolvida com diversos processos neurológicos, pois o medicamento, ao torná-la alvo de sua ação, pode provocar distúrbios mentais nos pacientes.

“Alguns subtipos de canais de sódio, no entanto, aparentam ser especializados apenas no processo da dor, o que deverá evitar a ocorrência desses efeitos”, contrapõe Beirão. Conforme relata, a contribuição da UFMG consiste em analisar quatro modalidades de canais de sódio relacionados a dores neuropáticas usando células extraídas de humanos, ratos e rã Xenopus, espécie exótica para a qual ele aguarda autorização do Ibama para sua importação. Simultaneamente, toxinas disponíveis no Laboratório estão sendo avaliadas para serem usadas nessas estruturas, com o objetivo de criar modelo de substâncias para nova geração de drogas destinadas a dores intratáveis. Os trabalhos começaram em 2006 e são financiados pelo CNPq e pela Fapemig.