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Nº 1617 - Ano 34
07.07.2008

Invernos efervescentes

Acolhida calorosa, alegria e diversidade são algumas das características do Festival, segundo artistas que passaram pelo evento

Itamar Rigueira Jr.

Acervo Pessoal
Pequeno_gesto
Antônio Guedes com integrantes do Teatro do Pequeno Gesto: calor humano nas ruas frias de Ouro Preto

 

Em 1972, um grupo de mineiros interessados pela dança – entre eles, os irmãos Pederneiras – teve, durante o mês de julho, em Ouro Preto, o primeiro contato com o coreógrafo e bailarino argentino Oscar Araiz. Convidado com sua companhia, Araiz deu cursos e apresentou espetáculos na sexta edição do Festival de Inverno da UFMG. Da relação que se estabeleceu ali, nasceu também uma idéia de profissionalização da dança.

“Naquele ano e no ano seguinte, conhecemos outras pessoas, como excelentes professores de mímica, que nos ajudaram a catapultar a idéia de se criar uma companhia de dança moderna”, conta Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo, fundado em 1975, em Belo Horizonte. Oscar Araiz voltaria ao Brasil e seria fundamental para a montagem de Maria, Maria e O último trem, os primeiros trabalhos da companhia.

Intimamente ligado à história do grupo, o Festival de Inverno evoca, para Rodrigo Pederneiras, a lembrança dos primeiros happenings, em que se juntavam artistas da música, da dança e do teatro para criações espontâneas e coletivas. “Naqueles anos de chumbo, o Festival foi muito importante, dali saiu muita coisa. Existia uma comunicação, uma efervescência que eram muito instigantes”, diz Pederneiras.

Acervo Pessoal
Rodrigo
Pederneiras: profissionalização da dança

A palavra efervescência aparece com facilidade nas conversas sobre o Festival de Inverno. Antônio Guedes, criador há 16 anos do Teatro do Pequeno Gesto, do Rio de Janeiro, que esteve em Ouro Preto em 1998 e 1999, carrega essa sensação na memória. “O Festival é dos mais quentes e gostosos de que participamos. A cidade linda, as ruas cheias e muita alegria”, diz. Ele esperava encontrar um público exclusivamente mineiro e se surpreendeu. “Vinham espetáculos e pessoas do país inteiro, gente que respondeu muito bem à nossa apresentação”, conta o encenador, que em 1999 mostrou versão de A serpente, de Nelson Rodrigues.

Companheira de Antônio Guedes no Teatro do Pequeno Gesto, Fátima Saadi foi apresentada a Ouro Preto na adolescência. “Experimentei um frio que, como carioca, não conhecia. Foi como uma lufada de ar fresco em meio à realidade cinzenta dos anos 70”, diz.

Felipe Zig
Yamandu
Yamandu Costa: charme especial

Alunos sedentos

Fátima e Antônio Guedes destacam ainda a forma acolhedora como foram recebidos pela organização do Festival. Isso permitia, segundo Guedes, que o trabalho corresse “sem problemas, apenas com prazer”. A impressão coincide com a de Carlos Simioni, fundador e coordenador do Grupo Lume, núcleo de pesquisa teatral da Unicamp que participou do Festival de Inverno em Ouro Preto (1995) e em Diamantina algumas vezes nos últimos anos.

Responsável por cursos e apresentações, o Grupo Lume tem encontrado no Festival “uma terra fértil”, de acordo com Carlos Simioni. “Nossos alunos são ávidos por informações, e muitos deles criaram grupos que ainda se comunicam conosco e seguem nosso trabalho”, conta. Com quase 25 anos de existência, o Lume tem como base o trabalho do ator-pesquisador, criando métodos de pesquisa de atuação, técnicas corporais e vocais.

Simioni também chama atenção para a diversificação que caracteriza o evento promovido pela UFMG. “O Festival não segue uma linha única, mescla várias áreas, que se comunicam. Além disso, consegue, ao mesmo tempo, difundir a cultura mineira e trazer para Minas o que se faz de importante em outras regiões”, afirma o pesquisador da Unicamp.
A cantora Patricia Ahmaral, que incluiu o Festival de 2000, em Diamantina, no programa de lançamento de seu primeiro CD, não esquece o clima diferente das platéias do evento. “A gente encontra pessoas com a cabeça e o coração abertos para absorver novas informações e experiências”, diz a ex-aluna e ex-professora da Escola de Música da UFMG.

Carlos Gaúcho, que integra com Mônica Simões o duo teatral Caixa de Imagens, outro convidado assíduo do Festival de Inverno, diz que tem saudades – a última vez foi em 2005 – da “acolhida de um povo apaixonado. Saímos com energia renovada, pronto para continuar criando. É um festival que não fica só no bate-papo, na teoria, as coisas acontecem na prática”, testemunha um dos criadores da “caixinha”, onde o duo apresenta espetáculos para um espectador a cada vez.

Palco sagrado

Virtuoses do violão, o carioca Guinga e o gaúcho Yamandu Costa trazem na memória emoções ligadas em grande parte a um palco especial do Festival de Inverno. Ambos se apresentaram, em anos diferentes, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Diamantina. “Uma catedral belíssima, com um som superbacana”, descreve Yamandu. “Foi um concerto maravilhoso, um espetáculo emocionante”, derrama-se Guinga.
O gaúcho conta que lá conheceu outros músicos e tem gravado ainda na lembrança o “charme todo especial” do evento. “O frio dessa época cria um clima muito aconchegante e agradável”, elogia Yamandu Costa. Guinga, por sua vez, prefere destacar o calor do público e a magia do passado associados à cidade. “Tive experiências espirituais muito fortes naquelas casas antigas, marcadas pela história dos escravos”, confidencia o compositor e instrumentista.

Se Guinga e Yamandu sentiram o vigor do Festival em edições mais recentes, há quem venha percorrendo desde os primórdios – e de ângulos bem diferentes – a trajetória do evento. O compositor mineiro Fernando Brant, autor de clássicos como Travessia e Canção da América, participou, bem no início dessa história, apenas como espectador.

“Passava uma semana em Ouro Preto, conhecia todo mundo”, rememora.
Em 1969, passou a mirar o Festival com olhos de repórter, enviado pela revista O Cruzeiro, ícone da imprensa brasileira da época. Em dez páginas, no mínimo, ele falava sobre a “novidade” que ainda representava o evento, reunindo gente do Brasil inteiro. Mais tarde, Fernando Brant voltaria como convidado, já no papel de artista, para shows e discussões. “O Festival de Inverno é um verdadeiro ponto de encontro”, define, com economia e precisão.

Foca Lisboa
Galpao
Grupo Galpão volta a se apresentar no Festival

Os primeiros anos

Eles guardam a memória de um tempo em que o Festival de Inverno da UFMG sofria com a falta de luz elétrica e opções de hospedagem, e era preciso levar camas e colchões para Ouro Preto. Nomes como Julio Varella e José Adolfo Moura estavam lá em 1967, ano da primeira edição, e teriam por muitos anos papel fundamental na produção do evento que se tornou modelo para uma série de outros país afora.

Aluno de música, na época, da Fundação de Educação Artística, José Adolfo conta que o Festival de Inverno nasceu da necessidade de atualização em relação ao que acontecia dentro e fora do país. “Freqüentávamos um evento do gênero em Teresópolis, nas férias de janeiro, e resolvemos aproveitar a folga de julho”, diz. “Havia carência muito grande de informações novas, não apenas em função da falta de liberdade de imprensa, naqueles tempos de ditadura – mas também pelo desinteresse de muita gente na divulgação do que era contemporâneo, por exemplo, na música e nas artes plásticas”, lembra José Adolfo, que integrou a coordenação por muitos anos e dirigiu o chamado Festival Mirim.

Imagem do filme 40 Invernos
Varela
O pioneiro Júlio Varella:
benefícios para as cidades e estudantes

“O sucesso do Festival de Inverno se deveu muito, no início, à qualidade dos professores e dos convidados estrangeiros. Na época, já contávamos com suporte de embaixadas e entidades como o Goethe Institut”, relata Julio Varella, que trabalhou no evento até 1993, a maioria das vezes como diretor-executivo ou coordenador de produção.

O evento cresceu e Ouro Preto passava por transformações radicais em julho. A cidade era extremamente receptiva ao Festival, até porque se beneficiava de todo aquele movimento.

“Em um mês, o Festival rendia para a cidade mais que em todo o resto do ano”, afirma Julio Varella.
Mas ele também conheceu o outro lado da moeda. “Em 1979, chegou a faltar comida e a cidade entrou em estado de calamidade pública”, revela o ex-diretor, lembrando que a situação levou à mudança para Diamantina. O evento passaria ainda por São João del-Rei e Poços de Caldas, e de novo por Ouro Preto, antes de voltar à cidade histórica do Vale do Jequitinhonha.

Se rendia muito em espécie aos comerciantes e aos cofres públicos, o Festival também trazia benefícios enormes aos estudantes. “Um mês de aulas no Festival podia ser comparado a um ano de estudos numa escola de arte”, avalia Julio Varella.

Por essas e outras, o esforço dos pioneiros do Festival de Inverno – a Varella e Moura devem se juntar nomes como Berenice Menegale, José Tavares de Barros, Fabio Moura, Leônidas Magalhães e Maria Clara Paes Leme Moreira, entre vários outros – recebe até hoje sinais explícitos e inesperados de reconhecimento. José Adolfo conta que foi abordado, em uma mesa de bar, por uma moça de quem não se lembrava. “Ela queria apenas agradecer a oportunidade de ter participado do Festival, muitos anos atrás”, conta José Adolfo.